A suspensão inédita das praxes relacionadas com caloiros na Universidade de Coimbra relança a discussão e levanta, novamente, interrogações sobre a tradição académica. A informação parece ser o método mais consensual para prevenir abusos futuros.
Por Camilo Soldado
Desde o luto académico, decretado no decorrer da crise académica de 1969 e levantado em 1980, que a praxe não era suspensa na Universidade de Coimbra (UC).
Devido a três queixas apresentadas no Conselho de Veteranos (CV), por estudantes da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da UC, nos passados dias 22 e 23 de março, as praxes de gozo e de mobilização foram suspensas.
As versões sobre os acontecimentos que motivaram as queixas multiplicam-se e, por isso, o Dux Veteranorum, João Luís Jesus, é cauteloso: “estamos a ouvir as pessoas envolvidas, desde as queixosas às acusadas, apurar realmente o que é que se passou e em que condições, apurar culpas, caso existam, relativamente às infrações praxísticas”.
O Dux refere que, em algumas das queixas, aparecem referências a violência física, pelo que foi dito aos queixosos que essas questões “não fazem parte da praxe e devem ser tratadas no ministério público”.
Uma semana depois de o Conselho de Veteranos ter tomado conhecimento do assunto, os tipos de praxe que implicam a interação de “caloiros” com “doutores” foram suspensas. O assunto tomou proporções mediáticas a nível nacional e o debate sobre abusos na praxe foi relançado com o Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, a vir a público para condenar “as praxes violentas”.
Não tardou a que docentes se pronunciassem sobre o assunto e começaram a circular na Faculdade de Letras da UC (FLUC) e Faculdade de Economia da UC (FEUC) abaixo-assinados entre os professores. O investigador do Centro de Estudos Sociais (CES), Miguel Cardina, regista esta posição dos docentes. “É algo que tem alguma relevância porque os professores, muitas vezes, têm um défice de participação naquilo que é a vida académica, estão fechados nas suas cátedras”, entende o investigador.
Catarina Martins é uma das promotoras iniciais da petição que conta agora com mais de 100 assinaturas na FLUC. O abaixo-assinado, “que resulta de uma preocupação generalizada relativamente a abusos em práticas de praxe”, pretende fazer com que os órgãos diretivos da faculdade forneçam uma maior informação aos estudantes do primeiro ano.
Na FEUC, José Manuel Pureza é um dos proponentes do abaixo-assinado que conta já com a subscrição de meia centena de docentes. “Há um silêncio que se tem estabelecido na Universidade de Coimbra em torno de práticas que são atentatórias da dignidade das pessoas que nelas vivem e esse silêncio é insuportável”, acredita o docente.
Professores com várias orientações relativamente à praxe já assinaram, garante Catarina Martins, que, expõe “situações violentas física e psicologicamente para os estudantes, mas também para os professores porque há registo de atos de invasão de aulas por parte da praxe”, o que constitui “uma disputa do território da sala com os professores”.
O docente da Faculdade de Economia esclarece que o sim ou não à praxe não está em questão. “O que está em jogo é uma iniciativa por parte da faculdade no sentido de informar, de acompanhar e esclarecer todos os estudantes”, explica José Manuel Pureza.
João Luís Jesus considera que o intuito dos abaixo-assinados é “redutor”. “Aquilo que eles defendem é que a violência gratuita e a falta de educação devem acabar na praxe. Eu acho que aquilo que os docentes estão a pedir que acabe, deve acabar em todo o lado”, avalia o Dux. Reconhecendo que há abusos pontuais no decorrer da praxe, João Luís Jesus relaciona esse facto com o que diz ser a falha na formação cívica das pessoas.
Um ritual em mutação
O historiador e docente na FLUC, Amadeu Carvalho Homem, também já subscreveu o abaixo-assinado e tece duras críticas sobre àquilo que é hoje a tradição estudantil: “a praxe de hoje, em relação àquilo em que foi a praxe no passado, não é mais do que uma grosseira caricatura”.
O excesso está ligado à história da praxe, inclusive há registo de mortes de “novatos” nos anos em que a praxe ainda não tinha esse nome. Por entre suspensões e discussões a praxe evoluiu. Carvalho Homem explica que, “à medida que o tempo foi decorrendo, a própria dimensão e o maior eco da dignidade das pessoas e dos direitos humanos começou a ser preponderante”. Para o mesmo, “a praxe começou a ser um instrumento extremamente produtivo, eficaz e inteligente de dar coesão a uma determinada academia”.
Nesta perspetiva, o Dux considera que, nas últimas cinco décadas, “grande parte daquilo que era corriqueiro acontecer, neste momento é proibido, mas a essência daquilo que é praxe está inalterada”. Apesar de a praxe ter evoluído desde as suas origens e o seu código estar em mutação João Luís Jesus é perentório: “A praxe é hierárquica, é machista, é sexista. São características intrínsecas à praxe da UC e quando isso deixar de existir, deixa de ser a praxe da UC”.
O historiador considera que a praxe sempre foi “um instrumento de relacionamento dignificante para ambas as partes” mas entende que esse sentido está perdido. Assim sendo, “significa que a praxe deixa de fazer sentido, que é quase higiénico acabar ela se por acaso ela se mantiver tal como está”.
A importância da informação
Na Universidade do Minho, na sequência de práticas abusivas na praxe no início do ano letivo, a reitoria colocou restrições à praxe nas instalações de instituição. O proponente do abaixo-assinado na FEUC veria com bons olhos “uma intervenção por parte da reitoria no sentido de fazer sentir à comunidade universitária que repudia por inteiro quaisquer situações que violem a dignidade das pessoas”. No entanto, João Luís Jesus afirma que o código da praxe “já prevê essas restrições de modo a que não aconteçam atropelos no exercício das regras da praxe”.
O Dux Veteranorum da UC acredita que não é a fazer esse tipo de proibições que se resolve o problema porque, “se proibirem as pessoas de praxarem em determinado local, pura e simplesmente, elas deslocam-se para outro”.
Até ao fecho da edição, o Jornal Universitário de Coimbra – A CABRA, tentou obter um comentário da reitoria da Universidade de Coimbra, sem sucesso.
A resolução dos problemas em termos de praxe deve ser resolvido através de informação e tentar sensibilizar as pessoas para a realidade e para os limites que existem. A opinião é consensual entre os promotores das petições e o Dux: “As faculdades têm que ter um papel interventivo nessa dimensão de esclarecimento”, acredita Catarina Martins.
Para João Luís Jesus, o papel do Conselho de Veteranos tem estado a ser cumprido. “Estamos a falar de um caso em vinte mil estudantes. Isso é sinal que isto é uma situação muito esporádica na UC”, afirma. Há três anos que o CV entrega gratuitamente um exemplar do código da praxe e, segundo o Dux, no primeiro ano foram entregues 600 exemplares, no segundo entre 800 e 900 e no presente ano letivo foram entregues mais de 1000. A completar a entrega, o Conselho de Veteranos “faz regularmente sessões de esclarecimento nas faculdades de modo a que haja uma maior divulgação possível das normas”.
Para Pureza, se o abaixo-assinado “der origem a debates sobre o que é a praxe, o que deve ser, o que não deve ser, excelente”. Entretanto, na Faculdade de Letras, está já agendado um debate para amanhã com o tema “A praxe académica ontem e hoje”. Catarina Martins adianta que já há contactos com várias universidades “para uma manifestação geral de docentes contra as praxes violentas”, apesar de serem apenas contactos preliminares.
O fim da suspensão
Os factos que deram origem ao inquérito remontam a “finais de outubro, início de novembro”, explica João Luís Jesus, mas só há três semanas chegaram ao conhecimento do CV, sob a forma de queixa. Enquanto o inquérito decorrer, mantém-se a suspensão da praxe de gozo e de mobilização, uma suspensão que nunca tinha ocorrido de uma forma transversal à UC, a não ser por razões políticas.
O Dux prevê que a fase de inquérito esteja concluída até à Queima das Fitas pelo que, a seguir à semana festiva, o CV deverá reunir para analisar os factos recolhidos. Terminado o processo, será reposta a normalidade na praxe da Universidade de Coimbra.
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