“Os filhos dos dias” é a mais recente obra de Galeano. Tem 366 histórias e aparece em formato de calendário. O escritor uruguaio falou do seu trabalho numa entrevista feita por LaRed21.
LaRed21: Porque este título: Os filhos dos dias?
Eduardo Galeano: Segundo os maias, nós somos filhos dos dias, ou seja, o tempo é que estabelece o espaço. O tempo é nosso pai e nossa mãe e, como somos filhos dos dias, o mais natural é que em cada dia nasça uma história. Somos feitos de átomos, mas também de histórias.
LaRed21: Nessas histórias há muitas vinculadas à nossa vida quotidiana. Você assinala: “vivemos num mundo inseguro”. A particularidade é que projeta que existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que se refere?
EG: Muitos políticos no mundo inteiro, não é algo que passa somente no nosso país, exploram um tipo de histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Ensinam-te a ver o próximo como uma ameaça e proíbem-te de o ver como uma promessa, ou seja, o próximo, esse senhor, essa senhora que anda por aí, pode roubar-te, sequestrar-te, enganar-te, mentir-te, raramente oferecer-te algo que valha a pena receber. Creio que essa forma parte de uma ditadura universal do medo. Fomos treinados para ter medo de tudo e de todos e este é o álibi que necessita a estrutura militar do mundo. Este é um mundo que destina metade dos seus recursos à arte de matar o próximo. Os gastos militares, que são o nome artístico dos gastos criminosos, necessitam de um álibi. As armas necessitam da guerra, como os abrigos necessitam do inverno.
LaRed21: Quando fala dos medos, você joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma história que é “os meios de comunicação”. A que lugar você atribui aos meios em nossos medos?
EG: Às vezes, os meios atuam como medos de comunicação, então, convertem-se em medos de incomunicação. Isto não é verdade para todos, mas sim para alguns meios que no mundo inteiro exploram esse tipo de histeria coletiva desatada com o tema da insegurança. Mentem, porque a insegurança não se reduz à insegurança que se pode sofrer nas ruas. Inseguro é este mundo e a primeira é a insegurança no trabalho, que é a mais grave de todas e da qual nunca falam os políticos que exploram o tema da insegurança. Não há nada mais inseguro que o trabalho. Todos nos perguntamos: e amanhã, haverá quem me contrate? Voltarei ao lugar de trabalho onde estive hoje? Terá alguém ocupado meu lugar? Esse medo real de perder o trabalho ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais importante. Tão inseguro é o mundo, a quantidade de pessoas que matam os carros nisso que chamamos acidentes de trânsito, na realidade são atos criminosos por conta dos condutores que tendo permissão de dirigir, tem permissão para matar, ou a insegurança da maioria das crianças que nascem no mundo condenados a morrer muito cedo de fome ou de enfermidade incurável.
LaRed21: Aparecem histórias de desaparecidos, mas menciono uma em particular, chamada Plan Cóndor, onde a história que conta pertence a Macarena Gelman. Como fez para conhecer Macarena Gelman?
EG:Comecei por conhecer o pai de Macarena (Marcelo) e o avô Juan (Gelman) com quem trabalhei na revista CRISIS, em Buenos Aires, e que é meu amigo de toda a vida. São muitos anos de amizade ou melhor de irmandade. Juan (Gelman) teve que sair da Argentina para continuar vivo, naqueles dias que se viviam, em Buenos Aires, de onde tinha que sair ou esconder-se. Então eu recebia com muita frequência o seu filho Marcelo e fiz de pai por algum tempo. Depois mataram-no e a outra história é bastante conhecida. A mulher de Marcelo (María Claudia) foi sequestrada na Argentina. Eram acusados do delito de protestar, delito de dignidade que tem a ver com o direito estudantil ao protesto. Foram os crímes de rapazes como eles que foram assassinados muito cedo. À María Claudia assassinaram-na no Uruguai, onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o que melhor funcionou pois o Mercosur ainda tinha dificultades graves. O mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas do terror onde as ditaduras itrocavam favores. Mandaram María Claudia grávida para o Uruguai e aqui os militares uruguaios encarregaram-se do trabalho. Esperaram que ela desse à luz. Ela passou os últimos dias, ou talvez os seus últimos meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar (SID) onde se descobriu a placa em memória de María Claudia e todos os que ali estiveram. Impressionou-me o contraste da beleza exterior do palácio e os horrores que escondia. Depois de dar à luz, mataram-na e entregaram o seu filho(a) a um polícia, em troca de favores. A partir de uma busca complicada de Juan (Gelman) e dos seus amigos, conseguiu encontrá-la e agora chama-se Macarena Gelman. Nós tornámo-nos muito amigos e uma vez, jantando em casa, contou-me essa história que é parte das histórias de “Os filhos dos dias” (livro). É uma história muito íntima, muito particular e pedi-lhe autorização para publicá-la. É uma história rara, mas reveladora. Conta que quando ainda não sabia quem era e vivia noutra casa, com outro nome, nesse período sofria de insónias contínuas, que não a deixavam dormir à noite porque a perseguia sempre o mesmo pesadelo. Via uns senhores desconhecidos muito armados que a buscavam no dormitório onde estava a dormir, debaixo da cama, no guarda-roupa e em todas as partes, e ela acordava a gritar e angustiadíssima. Durante muitíssimo tempo, toda a sua infância teve esse pesadelo que a perseguia e ela não sabia porquê, de onde vinha. Até que conheceu a sua verdadeira história e soube que estava a ter os pesadelos que a sua mãe tinha vivido enquanto a formava no ventre. A mãe, uma estudante de apenas 19 anos, foi perseguida realmente por outros senhores armados até aos dentes que a encontraram e a mandaram para a morte no Uruguai. Macarena estava no ventre dessa mulher acossada e perseguida. Desde o ventre padecia da perseguição que a sua mãe sofria e depois sonhou e converteu nos seus próprios pesadelos. Ela sonhou o que a sua mãe tinha vivido. É uma história que parece uma metáfora da transmissão, das penas, dos horrores e também doutras continuidades que não são todas horríveis.
LaRed21: É um livro que contém muitas histórias de mulheres. Porquê?
EG: Também há muitas histórias de mulheres nos meus livros anteriores, como “Espelhos e Bocas do Tempo”. Há muitas histórias dos invisíveis e as mulheres ainda são bastante invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das culturas ignoradas, das pessoas ignoradas e que merecem ser redescobertas porque têm algo para dizer e vale a pena escutar. Neste último livro (Os filhos dos dias) há uma história que me impressionou muito e que não tinha escrito até agora, a de Juana Azurduy. Juana foi uma heroína das guerras de independência. Encabeçou a tomada do Cerro de Potosí que estava nas mãos dos espanhóis. Ela era chefe de um grupo guerrilheiro que recuperou Potosí das mãos espanholas. Depois continuou a lutar pela independência. Perdeu os seus 7 filhos e o seu marido nessa guerra. Finalmente, foi enterrada numa vala comum e morreu na pobreza, mais pobre que se possa imaginar. Antes tinha recebido um título militar, foram as forças independentistas que lhe deram um título que dizia em mérito: “a sua viril coragem”. Foi preciso muito tempo para que uma presidenta argentina (Cristina Fernández) lhe outorgasse o título de General pela sua valentia feminina.
LaRed21: Um elemento da Real Academia Espanhola assinalou como erro utilizar expressões que carreguem a linguagem. Era uma crítica à feminização como, por exemplo, quando se utiliza todos e todas. O que você pensa a esse respeito?
EG: O transcendente é o que está por trás, mas às vezes os conteúdos são refletidos nas palavras que expressam. Parece-me ridículo quando uma mulher se apresenta e me diz sou médico, será médica, eu contesto.
LaRed21: Há muitas histórias dos povos originários, da luta pelos recursos naturais e o rol das multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva amazónica.
EG: Essa história sobre a Amazônia recorda que a Texaco, empresa petroleira que derramou veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da solva equatoriana. Foi a juízo, mas perdeu. As vítimas desse atentado à natureza e às pessoas desse lugar não tinham meios econômicos, enquanto a Texaco contava com centenas de advogados. Ao cabo de anos, contudo, o pleito foi ganho, mas ainda não se colocou em prática, porque há muitas maneiras de se apelar, e de tirar a bola para fora e para isso não faltam doutores.
LaRed21: No livro tem um olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não descriminalizaram o aborto.
EG: O livro toca todos os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
LaRed21: As 366 histórias não são somente latino-americanas. Você percorre o mundo.
EG: Há muitas histórias que merecem ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a primeira mulher que assinou os seus escritos em tábuas de barro. Ocorreu há quatro mil anos e dizia que escrever era uma festa. Essa mulher é desconhecida. E vale a pena contar que essa história existiu.
LaRed21: A respeito da crise internacional, você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento dos indignados em Espanha.
EG: Esta crise provém de um círculo muito pequeno de banqueiros omnipotentes. Ocorreu-me para esta história um título sinistro que foi “adopte um banqueiro”. Os responsáveis da crise são os que mais se têm queixado e os que mais dinheiro tem recebido. Eles têm sido recompensados por fundir o planeta. Todo esse dinheiro que se destinou aos que causaram o pior desastre na história da humanidade seria suficiente para dar comida aos famintos do mundo com sobras, inclusive.
LaRed21: Você acha uma contradição a existência do movimento dos indignados e que, ao mesmo tempo, tenha ganho o Partido Popula em Espanha?
EG: O aparecimento dos indignados é o que de mais lindo ocorreu no mundo nos últimos tempos. Creio que o melhor da vida é a sua capacidade de surpresa. O melhor dos meus dias é o que ainda não vivi. Cada vez que uma cigana se aproxima para ler a minha mão peço-lhe por favor que a apague e não leia. Não quero que digam o que me vai ocorrer. O melhor que a vida tem é a curiosidade e a curiosidade nasce da ignorância do destino. A explosão dos indignados começou em Espanha e depois estendeu-se a outras partes. É uma boa notícia a capacidade de indignação. Bem dizia o meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido) que o mundo divide-se entre indignos e indignados e que tem de se tomar partido. Há que escolher. Pensei muito nele quando surgiu este movimento. Jovens que perderam os seus empregos e as suas casas por responsabilidade desses malabarismos financeiros que acabaram por despojar os inocentes dos seus bens. Eles não foram os que pediram empréstimos impossíveis. Não foram eles os culpados da bolha financeira e deste disparate que aconteceu em Espanha de construir e construir e agora estar cheia de moradias desabitadas e gente sem casa. O PP ganhou as eleições, é verdade. A direita ganhou as eleições e terá que lutar para que isso mude. Isto que aconteceu em Espanha também fala do desprestígio das forças de esquerda que entram na vida política, prometendo mudanças radicais, e depois terminam por repetir a história, ao invés de a mudar. Muitas pessoas, sobretudo os jovens, sentem-se desapontadas e abandonam a política.
Tradução: António José André
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