sábado, 12 de maio de 2012

Interrupção Voluntária de Gravidez – uma análise rigorosa, crítica e feminista


Caras/os amigas/os,


A UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta vem, por este meio, dar a conhecer um documento analítico sobre os dois relatórios da Direcção Geral de Saúde, divulgados na semana passada, relativos aos registos das interrupções da gravidez, ao abrigo da Lei 16/2007 de 17 de Abril.
Este documento visa não só contribuir para um melhor e maior conhecimento sobre alguns factos referentes à Interrupção Voluntária da Gravidez, em Portugal, como contrariar leituras redutoras, não comparadas e descontextualizadas dos dados dos relatórios acima mencionados e que pretendem colocar novamente o direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres sob a tutela de outrem, o que repudiamos.

Na parte final do documento em anexo, a UMAR responde também às declarações ofensivas da  responsável da Espírito Santo Saúde -  entidade que gere o hospital de Loures, – Dr.ª Isabel Vaz.

Saudações feministas da UMAR

Lisboa, 9 de Maio 2012

Interrupção Voluntária de Gravidez – uma análise sem preconceitos 

Quando ideologias profundamente conservadoras e princípios economicistas tolhem uma análise séria dos dados e procuram descarada e novamente colocar o direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres sob a tutela de outrem.

Na passada quinta-feira, 3 de Maio, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) deu a conhecer dois relatórios sobre os registos das Interrupções  da Gravidez (IG) ao abrigo da Lei 16/2007 de 17 de Abril - um com dados referentes ao período de Janeiro a Dezembro de 2011 e outro com dados referentes ao período de Janeiro a Dezembro de 2010 (edição revista em Março de 2012).  

Estes relatórios permitem fazer as seguintes reflexões: 

1 - Mesmo perante o agravar da situação económica e social de muitas famílias, o aumento do número de Interrupções Voluntárias da Gravidez (IVG) em 2011 foi menor do que nos anos anteriores, desmentindo portanto por completo uma leitura redutora, não comparada e descontextualizada dos dados dos presentes relatórios.  

Em 2011, registaram-se 19 802 interrupções de gravidezes até às 10 semanas por opção da mulher, o que corresponde a um aumento de 1,2% relativamente ao período homólogo de 2010 (mais 237 IVG do que o ano passado); inferior portanto ao aumento verificado em 2010 (1,8%) e em 2009 (6,7%). A nosso ver, este é um sinal bastante positivo, nomeadamente num momento em que as dificuldades económicas e sociais se fazem sentir cada vez mais, fruto do contexto de crise no qual vivemos e das sucessivas e gravosas medidas de austeridade adoptadas, lançando cada vez mais pessoas, nomeadamente mulheres, para o desemprego,  a precariedade, baixos salários, elevadas jornadas de trabalho não pago, pobreza. 

Este dado vai aliás ao encontro do que a Associação para o Planeamento da Família (APF) tem - nos seus vários estudos - demonstrado:  as mulheres residentes em Portugal adoptaram e adoptam cada vez mais hábitos de planeamento familiar, o que de resto se deve também ao facto da IVG poder ser hoje feita legalmente, por opção da mulher, até às 10 semanas. 


2 - As mulheres antes excluídas do sistema de saúde, por condenar-se legal e socialmente a prática de IVG, podem hoje efectuar um aborto seguro e legal acompanhado por profissionais de saúde e seguidos de consultas de planeamento familiar (não sendo de resto conhecida desde então nenhuma morte de mulher por ter realizado uma IVG). 
Dados salientados nos relatórios demonstram isso mesmo:  
“Em 2011, cerca de 97% das mulheres que realizaram  IG [interrupção da gravidez] por opção escolheram posteriormente um método de contraceção. (…) Nos vários relatórios já publicados, a percentagem de utilização de contraceção pós IG por opção da mulher varia entre 94-97%” [um valor muito positivo] (2012: 20).
“A percentagem de mulheres que não escolheram qualquer método contracetivo após uma IVG tem vindo a diminuir. Em 2010, 96,2% das mulheres adotaram um método contraceptivo (2012: 21)

A IVG em mulheres com menos de 20 anos mantém uma tendência decrescente (11,7% em 2011 e 12,1% em 2010), devido, nomeadamente, à diminuição de casos observados no grupo das menores de 15 anos. Mais uma vez, um dado positivo que merece ser destacado. 
3 - Três quartos das mulheres que realizaram em 2011 uma IVG nunca o tinham feito antes. 
- Entre as mulheres que efectuaram uma IVG em 2011, 74,1% nunca tinha realizado anteriormente uma interrupção; 20,4% realizaram uma; 4,2% tinham realizado duas e 1,3% já tinham realizado três ou mais no decorrer da sua idade fértil. 
No que concerne às mulheres que já tinham realizado uma IVG, importa salientar que o período fértil se prolonga por décadas, o que implica que, no caso em que houve mais do que uma IVG, elas poderão ter ocorrido num  período de tempo bastante espaçado, ao contrário do que parecem sugerir leituras redutoras e enganadoras de tais dados.  
De salientar ainda que, das mulheres que realizaram uma IVG em 2011 e que já o tinham feito mais do que uma vez ao longo do período fértil no qual se encontram, a percentagem é de 5,5%, uma clara minoria portanto, e não a maioria, como algumas pessoas (que pretendem que se volte à situação em que as mulheres eram criminalizadas) parecem apostadas em fazer crer. 
Sobre outras IVG realizadas no mesmo ano, 2011, elas representam apenas 2,3% (464 casos).  
Apesar de minoritários, estes casos devem ser acompanhados e só poderão sê-lo se se enquadrarem no sistema de saúde acessível a todas/os e ao qual as mulheres, independentemente da sua origem socioeconómica e da sua localidade de residência, se possam dirigir sem serem estigmatizadas.  
Dizer ainda que, tal como salientam os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos ao (des)emprego, empurrar muitas mulheres para o desemprego, para a precariedade laboral, para a dependência económica de outrem, dado os baixos níveis salariais existentes em Portugal e tendentes a diminuir não é, nem será, de todo, a “solução” para combater essa realidade. Assim, uma  análise séria e desprovida de juízos morais distorcidos deve concentrar-se em garantir cuidados de saúde para todas/os, eficazes e próximos das pessoas, e a montante procurar garantir que as dificuldades económicas pelas quais se vêem confrontadas cada vez mais mulheres sejam não agravadas, mas antes combatidas, repondo  níveis elementares de justiça social. 
4 - O actual desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai em sentido contrário do desejável e necessário, aprofundando as desigualdades económicas, sociais e territoriais existentes, nomeadamente no  que se refere ao acesso das mulheres aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. 
Um dado apresentado nos relatórios da DGS deve ser salientado: em 2011, 66,9% das IVG por opção da mulher foram realizadas em unidades oficiais de saúde (SNS), o que constitui uma diminuição de cerca de 2,6% relativamente a 2010. Este dado traduz uma menor capacidade do SNS em dar resposta a um cuidado de saúde sexual e reprodutiva, fruto do desinvestimento verificado e  traduzindo-se nomeadamente numa diminuição dos recursos humanos dos estabelecimentos públicos de saúde e agravando, de resto, desigualdades territoriais já  existentes. Sabemos que, em algumas zonas do país, como nas regiões do Alentejo e dos Açores, por exemplo, as opções públicas existentes para as mulheres que querem realizar uma IVG são muito diminutas. Tal facto traduz-se no reencaminhamento  de muitas mulheres para estabelecimentos privados, usando quase sempre o método cirúrgico e, portanto, mais caro.  
5 - O facto do Estado ter gasto mais em despesas relacionadas com a IVG (cerca de 500 000 euros adicionais de 2010 para 2011), como salienta o jornal Público (edição impressa de 4 de Maio), deve-se em grande parte não só ao número elevado de objectores/as de consciência no serviço público como também ao desinvestimento verificado no Serviço Nacional de Saúde que obriga  muitas mulheres a recorrer ao privado, muitas vezes de resto encaminhadas pelas próprias unidades públicas de saúde que contratualizaram com entidades privadas.
Assim, a “solução” NÃO passa por voltar a lançar para a clandestinidade, com sérios riscos para a sua saúde e agravamento dos custos económicos, as mulheres que querem recorrer a uma IVG, nem por tornar esta prestação de serviço só acessível para algumas, as que mais recursos económicos têm e/ou as vivendo nas grandes cidades. Tem de passar por procurar garantir que nenhuma mulher por motivos económicos, sociais, culturais ou territoriais não tenha acesso a uma unidade de saúde pública.  
6 - Por fim, verificou-se em 2011 uma alteração na distribuição das mulheres no que respeita à sua situação laboral. Assim, os grupos correspondentes à categoria “desempregadas”, com 19,4% do total dos registos, assim como à categoria “agricultoras, operárias, artífices e outras trabalhadoras qualificadas”, com 19,0%, registaram um aumento em relação aos anos anteriores. De facto, em anos anteriores, verificava-se um predomínio das categorias “trabalhadoras não qualificadas” e das “estudantes”. Quanto à situação laboral do companheiro, assinala-se o aumento do peso da categoria “desempregado” (8,30% face a 7,26% em 2010). 
Estes dados mostram o quanto as medidas de austeridade sucessivamente tomadas têm tido um efeito devastador na vida dos portugueses, nomeadamente das portuguesas, lançando mais mulheres para o desemprego e para a pobreza, o que justifica a alteração na distribuição das mulheres  que realizaram uma IVG no que respeita à sua situação laboral. Infelizmente, os dados reproduzem, ainda que em menor medida, o que está a acontecer na nossa sociedade: um aumento do desemprego, da precariedade, da pobreza, das dificuldades sentidas por muitas famílias em subsistir ou de muitas jovens em pensar sequer em constituir família.  
De resto, outro dado salientado pelo relatório vai ao encontro do dito acima “51,8% das mulheres que efectuaram uma IVG até às 10 semanas de gestação, por opção, referiram ter 1 a 2 filhos e 40% não tinham filhos” (2012: 14). 
Ter filhos/as é cada vez mais uma possibilidade só  para algumas pessoas. Aliás, a retirada ou diminuição dos abonos de família a muitas famílias, bem como a redução dos valores dos subsídios referentes à maternidade, à paternidade e à adopção - decidida por este Governo - só veio agravar esta realidade. Isto sem falar da redução quase generalizada das prestações sociais e do aumento substancial do custo de vida. 
Este facto é que deve ser o cerne das atenções: muitas mulheres querem constituir família ou alargar a existente e não o podem fazer, de forma responsável, por não terem condições económicas para tal.  
7 - Uma leitura atenta e honesta dos dados apresentados pela DGS demonstra que a evolução em relação à Interrupção Voluntária da Gravidez, em Portugal, tem sido positiva. Aliás, os dados de 2008, disponíveis e citados no relatório, mostram que “Portugal detém um número abortos inferior à média  europeia”. O que, segundo a própria DGS, 
“(…) só se manterá se existir uma mensagem clara e segura de apoio à gravidez planeada; uma aposta no aconselhamento contracetivo correto e na disponibilização de métodos seguros e eficazes” (2012: 30). 
A isto acrescentamos que só se manterá se, ao invés de procurar desmantelar e enfraquecer o SNS, se investir nele tornando-o mais acessível a todos/as, independentemente da origem socioeconómica ou da localidade de residência de quem a ele precise de recorrer. 
Por tudo isto: 
- Não aceitamos, nem aceitaremos que ponham em causa os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, nomeadamente o direito a interromper uma gravidez não desejada. A vitória do Sim à despenalização do aborto, realizado por opção da mulher até às dez semanas, representou uma conquista civilizacional retirando Portugal do mapa do subdesenvolvimento em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, direitos humanos, e indo de resto ao encontro de tudo o que é recomendação nesta matéria. Esta conquista permitiu que mais nenhuma mulher morresse em Portugal devido a complicações pós-aborto clandestino, retirou da esfera da justiça um problema de saúde e de liberdades individuais e retirou da tutela de outrem uma decisão que cabe às mulheres; 
- Não aceitamos nem aceitaremos que dados quantitativos, como os contidos nos relatórios da DGS, sejam ou manipulados ou lidos de forma distorcida, porque enviesada por concepções ideológicas neoliberais e  conservadoras com objetivos de prejudicar as vidas das mulheres e suas famílias e  colocar em causa a liberdade das mulheres em decidir sobre os seus corpos e sobre a maternidade; 
- Denunciamos o aumento das desigualdades económicas, sociais e territoriais existentes no acesso aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva e rejeitamos qualquer intenção que vá no sentido de as aprofundar; - Defendemos cuidados de saúde gratuitos, universais e de qualidade. Rejeitamos a mercantilização da prestação de cuidados de saúde, nomeadamente de saúde sexual e reprodutiva e portanto recusamos a taxação da IVG.
- Reiteramos que qualquer efectiva e sincera preocupação com o bem-estar das pessoas, com Portugal, com a justiça social, com o desenvolvimento, deve centrar as suas atenções sobre os níveis crescentes e gritantes de desigualdades que têm afectado a maior parte da população, nomeadamente as mulheres.
Sobre as Declarações da Responsável da “Espírito Santo Saúde” 
No primeiro dia dos trabalhos do XXIV Encontro Nacional da Pastoral de Saúde, a responsável da Espírito Santo Saúde - entidade que gere o hospital de Loures, – Dr.ª Isabel Vaz, declarou a 2 de Maio de 2012: 
“Tivemos mais consultas de interrupção voluntária da gravidez do que de obstetrícia [para ter filhos/as]. E algumas das pessoas a repetirem pela segunda ou terceira vez”. 
Argumentou ainda que a “cobertura universal dos cuidados de saúde não é possível”, pelo que “não há dinheiro para pagar tudo”, e “há que fazer escolhas”. Segundo a mesma “não vale a pena fazer declarações de amor ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). O que é imperioso é gerir melhor”.  
Coincidência ou não, estas declarações surgiram na  mesma altura em que foram tornados públicos os relatórios da DGS acima analisados, o que contribui, e muito, para uma leitura, como acima salientamos, profundamente enviesada e descontextualizada da realidade. 
O Hospital de Loures representa, como bem sabemos e como de resto é do domínio público, uma das parcerias publico privadas (PPP) ruinosas para o Estado, um exemplo da má gestão de dinheiros públicos, algo que não só a Dr.ª Isabel Soares não condena como diz sobre as PPP que é “preciso acabar com o mito dos malefícios das Parcerias Público-Privadas”. Ora, não se tratando de um mito, antes tratando-se de um triste e lamentável facto, como de resto a Auditoria Cidadã à Dívida Pública bem demonstrou, estranhamos essa desvalorização por parte de alguém que diz que “não há dinheiro para tudo” e que sustenta a sua tese de negação de direitos sexuais e reprodutivos às mulheres sobre o “princípio”, abstracto pelos vistos e aplicável só quando o grupo Espírito Santo Saúde não é uma das partes interessadas, da melhor gestão dos dinheiros públicos. 
Para além do mais, importa salientar que o Hospital de Loures foi construído sabendo o Estado já na altura que, em termos de obstetrícia e ginecologia, existia uma oferta excendentária naquela cidade e que muitas das mulheres residentes no concelho de Loures recorriam aos serviços da Maternidade Alfredo da Costa. São, pois, esses os factos que explicam que tenha havido naquela unidade poucas consultas para apoio a gravidezes. Isso e, como já referido acima, o facto - ao qual por certo a Dr.ª Isabel Vaz não será alheia, pelo menos assim o esperamos, sob pena de viver num país que não é o nosso - das políticas iniciadas anteriormente e agravadas pelo actual Governo e pela Troika, acentuarem dramaticamente os níveis de pobreza, de desemprego, de precariedade, colocando em causa a subsistência de muitas famílias, os projectos de vida de muitos/as jovens, a constituição de família ou de famílias mais alargadas. 
Por fim, importa salientar que a prevenção da IVG faz-se, entre outras coisas acima referidas, através do planeamento familiar gratuito, universal e de qualidade, algo do que o Hospital de Loures não se pode orgulhar, porque não o oferece às suas utentes, mas sobre isto a Dr.ª Isabel Vaz nada disse. 
Assim, repudiamos este tipo de visões distorcidas, manobras, insultando de resto a nossa inteligência, procurando tutelar de novo o direito de uma mulher, o direito de todas as mulheres, independentemente da sua origem socioeconómica ou local de residência, a poderem decidir livremente sobre a prossecução ou não de uma gravidez. 
A Direcção da UMAR





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