sexta-feira, 9 de março de 2012

Dívida espanhola: “O problema da dívida não é da sociedade, mas dos bancos.”



Miren Etxezarreta*

O cidadão minimamente atento aos meios de comunicação social poderia concluir que o Estado Espanhol sofre uma crise crónica de endividamento da qual só se sairia com austeridade e terapias de choque. A professora emérita da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB), Miren Etxezarreta, critica este alarmismo e enfatizou que o problema da dívida espanhola “não é dos cidadãos, mas fundamentalmente dos bancos”.

A co-autora dos livros "Que Pensões, Que Futuro?" e "Crítica à Economia Ortodoxa", além de colaboradora do jornal “Público” e do semanário de economia “Taifa”, dedicou a sua intervenção no quarto painel da Academia do Pensamento Crítico, organizado pelo Socialismo 21 e pelo Viejo Topo, para desmontar alguns das "falácias" que a ortodoxia impõe na atual crise nacional. Muitas delas, relacionadas com os problemas criados pelo endividamento.

À entrada, repete-se até à exaustão que o Estado Espanhol tem de enfrentar uma grave crise da sua dívida soberana, quando a taxa da dívida pública se situa perto de 66% do PIB. De acordo com Etxezarreta, "não é muito elevada", especialmente quando comparada com 200% no Japão (embora quase toda financiada pela poupança interna), 73% na Alemanha, 76% na França ou a média de 84% na zona Euro. Além disso, a economista acrescentou, "a metade da dívida pública espanhola é financiada com capital interno."

Onde reside então o centro da questão? Na dívida privada e, acima de tudo, na dívida externa, que se situa em 167% do PIB. "As empresas espanholas importaram mais do que exportaram, mas, especialmente, com a bolha imobiliária, a banca pediu empréstimos externos, para, por sua vez, conceder empréstimos ao setor da construção. Porque temos de pagar agora os cidadãos esta dívida? Não é nossa, mas, basicamente, dos bancos ", insistiu Etxezarreta.

Além disso, a dívida externa espanhola (167%) está no mesmo nível que a grega ou alemã, e bem abaixo da do Reino Unido (413%). No entanto, a economia espanhola apresenta uma dificuldade adicional de que pouco se fala em relação à dívida: a fragilidade do sistema produtivo.

"Aqueles que nos emprestaram o dinheiro sabem que a nossa economia real tem problemas graves, que atualmente só geram valor o turismo e os automóveis, é a ressaca da bolha imobiliária; outros países como a França ou a Bélgica, confrontam com mais facilidade o seu endividamento externo porque conservam um sistema produtivo mais poderoso.

Outro mito sobre o défice e a dívida pública. É senso comum que, quando chega a crise (a Espanha no segundo semestre de 2007) caem as receitas do Estado como resultado do declínio da atividade económica. Mas o que está por trás desse fato óbvio? As reformas fiscais, que desde o início dos 80 foram realizadas em todo o mundo, incluindo Espanha, esvaziaram o Estado dos recursos.

Miren Etxezarreta recorda que a reforma fiscal de Fernandez Ordonez, em 1977 - "importante e necessária" - colocou a maior taxa de imposto de renda em 66%. Em 2006, os maiores rendimentos pagavam 42% em impostos sobre o rendimento. Os efeitos das contra-reformas fiscais pouco se visualizam enquanto perdura o boom imobiliário, mas com a crise é evidente o declínio das receitas estatais e o aumento do défice. Paralelamente, diz a economista, criaram-se figuras impositivas especiais para fundos de investimento ou SICAV (empresas nas quais os mais ricos guardam os seus capitais). Isso explica em boa medida que o excedente de 1%, em 2007, se transformou num défice de 11,4%, em 2009.

Também se fala frequentemente em "resgatar" o sistema financeiro. Outra falácia, segundo a professora emérita da UAB. "Desde o início da crise, o Estado prestou um apoio maciço aos bancos e caixas económicas, dizendo que se tinha de salvar o sistema financeiro; em caso afirmativo, considero que no atual marco económico fazem falta entidades financeiras, mas a questão é que são realmente salvos os donos dos bancos e aqui está a trampa.” "Há outras medidas, como a criação de um banco público, o que nem sequer foi considerado", conclui a professora.

Outra das questões abordadas é a redução a caricatura dos cidadãos da periferia europeia. Se não foi suficiente a sigla PIGS (referindo-se a Portugal, Itália, Grécia e Espanha), Merkel e a imprensa alemã desenham o estereótipo dos laboriosos trabalhadores alemães que com os seus impostos financiam o bem viver dos países do sul. Isso legítima a exigência de planos de austeridade para garantir as dívidas contraídas com os bancos alemães. Segundo Miren Etxezarreta, "assim se oculta que os trabalhadores alemães passem uma década a sofrer cortes salariais e a perder o poder de compra.”

Em 2010, Rodriguez Zapatero anunciou medidas duras de ajuste em torno de três eixos, e com a crise da dívida soberana como pano de fundo. Trata-se de aplicar um corte orçamental de 50.000 milhões de euros em três anos e duas reformas draconianas: uma laboral e outra do sistema de público de pensões. "Mas só a primeira está relacionada com a dívida e, além disso, são medidas que em nenhum caso, se apresentam como objetivo para a criação de emprego", diz a economista, que acrescenta "estamos diante de um processo de contra-reformas e de cortes de direitos que até hoje continua."

Um dos últimos marcos na escalada para o paraíso neoliberal é a negociação coletiva. "Vendem-na como modernização e flexibilidade, mas quando ouvimos estas palavras, saímos a correr; o que tentam é fixar um Estado mínimo e o resto das convenções, negociá-las nas empresas; isto num país com muitíssimas empresas de entre 2 e 15 trabalhadores, é gravíssimo porque os trabalhadores não têm força para negociar ", disse Miren Etxezarreta

Afinal "a economia é muito simples", assegura. "Outra coisa é o jargão usado pelos gurus." E os mitos em causa. Como o de que não há dinheiro para colocar em circulação e reativar a economia. Espanha produz por ano o dobro que produzia em 1977, enquanto a população cresceu 25%. Portanto, há dinheiro disponível, mas onde está? "No capital financeiro", responde a docente. "Há mais milhões do que nunca, o grande problema é como se distribui a renda nacional; está muito mal distribuída, e disso não se fala.”

As cimeiras europeias não representam qualquer alternativa. Segundo a professora de Economia Aplicada, "converteram-se num jargão, mas nada se resolve; poderiam ter sido adotadas medidas como a compra maciça de títulos da dívida pública pelo Banco Central Europeu (BCE) ou a emissão de Eurobonds para coibir a especulação; mas não existe o menor interesse em que a UE funcione como um coletivo e que os países mais poderosos apoiem a periferia da Europa."

Aliás, há situações que parecem "o cúmulo do surrealismo." Como quando o Banco Central Europeu empresta 200.000 milhões de dólares ao Fundo Monetário Internacional, para que, por sua vez, este os empreste aos países da zona Euro; ou quando o BCE não pode conceder créditos aos países, mas sim aos bancos privados que os subscrevem por 1% e empregam esses fundos na compra de títulos da dívida espanhola a juros de 4-5% ou títulos gregos a 8%. Em conclusão, frisou Etxezarreta, "há um projeto claro para destruir as condições de vida que tínhamos construído a partir das lutas de gerações de trabalhadores, e tudo para o lucro de uma cúpula muito pequena, que quer manter a todo o custo a sua taxa de benefícios.”

Então, a resposta está no campo da política. Miren Etxezarreta opina que aos problemas do capitalismo atual, "não devemos responder com fórmulas tradicionais, vivemos uma etapa de transição nos modos de fazer política e é necessário inventar novas fórmulas, tais como o 15-M, mas isso não é fácil, porque temos mais de 40 anos de derrotas”."Deveríamos confiar no magma de pequenos grupos que coexistem na diversidade e provaram ser capazes de organizar grandes manifestações como as de 15 de outubro." Na riqueza dos pequenos grupos e no seu modo de alternativo de funcionar, sem cúpulas, nem hierarquia vertical, está hospedado um motivo de esperança. Muito necessário, porque - conclui a economista - "a luta de classes não acabou.”

 * Miren Etxezarreta -  professora de Economia. 

Tradução: António José André

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