sábado, 10 de dezembro de 2011

ARGUMENTOS SOBRE A POLÍTICA UNITÁRIA NA ESTRATÉGIA SOCIALISTA


SECTARISMO UM FANTASMA QUE AMEAÇA A ESQUERDA
FRANCISCO LOUÇÃ*


A ESQUERDA TEM SIDO DERROTADA. DESILUDA-SE QUEM, CONSTATANDO ESTA DERROTA, PROCURA PARA ELA UM ÁLIBI RESTRINGINDO ESSE RECUO À EUROPA E PRETENDENDO QUE, NA AMÉRICA LATINA OU NA ÁSIA, SE ERGUEM NOVOS CONTINGENTES DE COMBATES ILUMINADORES.
A SITUAÇÃO NESSES CONTINENTES É PROVAVELMENTE PIOR DO QUE NA EUROPA, DADA A VIOLÊNCIA DA OFENSIVA E A FRAGILIDADE DAS CONDIÇÕES DA RESISTÊNCIA.


A ARGENTINA serve de exemplo: onde a tradição do movimento operário era mais enraizada, onde a esquerda revolucionária era mais organizada, onde a revolta popular deu origem a movimentos de auto-organização que determinaram o colapso de sucessivos presidentes, foi onde o recuo se instalou mais depressa. No Brasil, onde a possibilidade de mudar a relação de forças era mais óbvia, a capitulação do PT fez a esquerda recuar uma geração.
A esquerda tem sido derrotada pela globalização realmente existente. Pela estratificação do desemprego e pela precarização da estrutura do trabalho, pelo avanço do liberalismo, pela unipolaridade mundial do supra-imperialismo, pela consolidação das instituições que transformam a Europa num Estado fechado contra a democracia e os direitos sociais. Mas talvez impressione mais que essa derrota tem sido marcada pela falta de combate ideológico, pela falta de ambição para a redefinição de um programa socialista, pela falta de ideias e de debate sobre os caminhos de resposta e de contra-ofensiva. A esquerda está prostrada.
Constato-o com entusiasmo e sem nenhuma angústia. Sempre foi nestes momentos de viragem que se fizeram ideias novas. Só o aguilhão da crise pode reconstruir a esquerda. Só a vontade de refazer pode criar novas capacidades. Talvez esta obrigação de refazer seja a oportunidade de recomeçar de novo.
Ora, para refazer, é preciso começar pelo trabalho da memória, para aprender com novos olhares. Neste artigo, proponho aos leitores um desafio: repensar as políticas unitárias no quadro de uma estratégia socialista. E quero demonstrar que as políticas unitárias foram sempre decisivas para criar partidos de esquerda com influência de massas. O sectarismo é, em particular nos momentos de refundação, o pior dos inimigos, aquele que tem que ser combatido com mais persistência, o que deve ser derrotado para que vença a esquerda. Porque o sectarismo é a escolha voluntária da incapacidade para a acção.

DIVIDIR PARA CLARIFICAR?

O tema pode parecer o mais desajustado. Afinal, a minha tradição teórica e também outras aparentadas, as que partilho com tantos dos leitores e das leitoras, diriam que, nos momentos de crise decisiva, a clarificação se fez sempre pela divisão. Nos momentos históricos, nas grandes rupturas inaugurais, foi a bifurcação que permitiu avançar. E sem ela estaria tudo perdido.
Então não foi assim na formação dos primeiros partidos social-democratas e socialistas, separando-se das correntes possibilistas? Não foi assim quando a social-democracia alemã cedeu e apoiou a Guerra Mundial, desmentindo e traindo assim o seu programa de paz – e não foi a ruptura contra a social-democracia que formou o comunismo? Não foram as sucessivas rupturas com a liderança da URSS e, muito depois, da China, que formaram as correntes revolucionárias mesmo nos tempos aterradores do ascenso do fascismo e, depois, na segunda metade do século?
Todas essas três grandes rupturas foram necessárias. E foram elas que definiram a história do “século das revoluções”. A primeira criou os partidos socialistas de massas do final do século XIX. A segunda criou os partidos comunistas e deu corpo à revolução russa e à esperança revolucionária na Europa central. A terceira respondeu à destruição da revolução, à coexistência pacífica, à conformação ditatorial e socialmente destruidora dos regimes de Leste e da China.
Olhando para trás, pode mos perguntar se foram necessárias essas rupturas. Se elas não dividiram e enfraqueceram o movimento popular. A resposta mais clara é a seguinte: foram necessárias, porque eram a condição de definir uma política nova que era a resposta útil para a organização de milhões de trabalhadores. Por isso mesmo, e não é paradoxal, essas rupturas foram sempre processos de reconstrução dominados por políticas unitárias. E sem essa reconstrução as alternativas tinham morrido.
Para ser ainda mais categórico: essas rupturas só conduziram a resultados sociais importantes para a organização dos trabalhadores porque eram conduzidas por estratégias de unificação de novos campos sociais e políticos. Sem essa unificação, os momentos de clarificação teriam sido estéreis.
Vejamos o caso que os militantes socialistas actuais conhecem pior, o da formação dos primeiros partidos socialistas. Sem cuidar das especificidades nacionais, que foram importantes e quantas vezes determinantes, o texto de Marx e Engels, o “Manifesto Comunista”, apresenta uma descrição muito viva das pugnas teóricas em que se formou a social-democracia clássica. É útil reler esse texto. Os adversários fundamentais dos marxistas eram os socialistas burgueses – os bismarckianos, os socialistas utópicos, os socialistas de “cátedra”. Todas essas correntes tinham em comum o possibilismo, um reformismo que recusava a formação política da classe operária como movimento independente da burguesia, e revolucionário. E foi contra eles que se começou a formar um novo campo político, que veio a dar origem à social-democracia clássica. O movimento nascia ou morria em função da criação desse pólo de políticas e de vida social, contra a burguesia dominante, a classe em ascensão e que conduzia a política.
O processo de formação dessa nova corrente internacional socialista foi sempre dominado por políticas de unificação. Com resultados nem sempre desejados: por exemplo, a Associação Internacional de Trabalhadores é formada por uma coligação abrangente de marxistas e bakuninistas, uma corrente anarquista muito agressiva contra Marx – chegam mesmo a propor a sua expulsão do conselho da associação, alegando que o filósofo e escritor Marx não era operário. Essa diversidade interna teria consequências em Portugal, onde os primeiros socialistas, como Antero de Quental, são contactados tanto por anarquistas como por marxistas, tendo dificuldade em destrinçar as suas propostas e, na verdade, em definir o que devia ser um partido socialista.
O próprio texto de Marx e Engels é demasiadas vezes lido com pouca atenção. Os militantes que o estudem hoje, no entanto, não podem deixar de ficar surpreendidos por uma contradição entre o título, que na realidade é “Manifesto do Partido Comunista” – note-se o “Partido” – e a afirmação categórica de que os comunistas (os marxistas) não pretendem criar uma organização separada, mas antes fazer parte de um partido operário de massas em conjunto com as outras correntes socialistas. Marx concebia claramente as suas tarefas políticas como a definição de um novo programa a partir da crítica ao capitalismo, mas suportado numa organização unitária para criar o movimento político dos trabalhadores.
Para Marx e Engels, não havia política que não incluísse a política unitária de construir um campo de representação e de organização: foi o que veio a ser o partido socialista ou social-democrata alemão, a que Engels dedicou os últimos anos da sua vida, já depois da morte de Marx.

SEMPRE A POLÍTICA UNITÁRIA
Esses partidos fracassaram na geração seguinte. Apesar de Jean Jaurès, de Rosa Luxemburgo, de Karl Liebknecht, o grosso da social-democracia alemã, o coração do movimento socialista europeu, apoiou a entrada da Alemanha na primeira guerra mundial e destruiu-se desse modo. O socialismo era – e é – incompatível com o belicismo e com o imperialismo. E foram poucos os militantes e as militantes que rejeitaram o imperialismo, mas seriam eles e elas quem refundariam o movimento operário.
Mas poderá esse fracasso ser usado, agora que sabemos como a história se desenvolveu, como um argumento contra a concepção do partido como movimento unificador dos trabalhadores, que promovia a sua organização sindical, que os representava nos parlamentos e nas autarquias, que lhes dava voz? Não pode. Esse partido representava tarefas e caminhos necessários. Era nesse partido que cabiam todas as forças da representação dos trabalhadores. O seu fracasso não era inevitável, não estava escrito no destino.
Mas a força social do belicismo foi mais forte do que a tradição popular contra a guerra. As grandes bifurcações da história, as guerras e as revoluções, são mesmo os momentos de redefinição das políticas, e foi neles que se fizeram as diferenças. São esses os momentos das refundações necessárias. O comunismo nasceu do fracasso histórico da social-democracia, assim como as correntes revolucionárias modernas nasceram depois em resposta ao fracasso histórico da URSS. As grandes definições separaram uns e uniram outros.
E foi o facto de unirem que garantiu a vitória de algumas das alternativas que surgiram das derrotas. Foi o que aconteceu com o meu segundo exemplo: o da criação dos partidos comunistas em resposta à traição da social-democracia.
O Partido Comunista alemão foi proclamado, a partir do punhado de militantes da Liga Spartaquista que se tinha oposto à guerra, apesar da oposição da sua dirigente mais destacada, Rosa Luxemburgo, que acreditava que ainda não havia as condições suficientes, precisamente porque o novo partido era ainda pouco representativo. Ora, a ruptura com a social-democracia já se tinha dado uns anos antes, mas entendia Rosa que a necessidade programática não substituía a força social. Era preciso muito mais, juntar muito mais força social para se poder criar o novo partido para a luta dos trabalhadores. O que é certo é que o partido comunista só passou a ter uma grande força política quando, uns anos depois, conseguiu integrar a maioria do USPD, o partido social-democrata “independente”, que também rompera com a social-democracia (e onde pontificava no primeiro período o mais conhecido dos teóricos marxistas de então, Karl Kautsky, o herdeiro de Engels, mas cujas ideias foram asperamente combatidas por Lenine).
O novo partido só existiu como partido de massas quando conseguiu unificar um campo político que o projectou como alternativa à social-democracia. Rosa Luxemburgo já tinha sido assassinada quando isso acontece, mas o facto reivindicou a sua concepção.
Quando o Partido Comunista Alemão decide desencadear a revolução, em 1923, é uma grande força implantada, representa a maioria dos activistas sindicais, publica 45 jornais diários, e polariza uma parte da social-democracia: para isso, o partido constituiu governos de coligação com sectores importantes da social-democracia em dois dos estados alemães mais industrializados. A revolução de 1923 fracassou, e depois desse fracasso começou o crescimento do nazismo.
Do mesmo modo, também na Rússia o novo partido resulta de um processo de convergências, embora muito diferente e mais marcado pela centralidade do núcleo leninista. O Partido Bolchevique era uma das alas da social-democracia russa que tinha rejeitado o apoio à guerra mundial, mas não era a única. Ao longo do ano de 1917, entre a revolução de Fevereiro e a de Outubro, o partido desdobra-se em iniciativas para reagrupar as vanguardas políticas, os trabalhadores mais combativos, os militantes mais dedicados. Assim, o Partido manteve a sua diversidade interna – o conflito aberto entre Lenine e Zinoviev e Kamenev sobre a preparação da insurreição é histórico – e foi integrando várias correntes, como foi o caso da Organização Inter-Distritos, dirigida por um antigo dissidente da social-democracia russa, Leon Trotsky, que foi imediatamente escolhido para os órgãos de direcção do partido. Ao chegar ao governo, o Partido Bolchevique realizou uma coligação com os socialistas-revolucionários de esquerda. Foram essas convergências e a sua clareza política que o reforçaram durante o ano decisivo de 1917. A política de unificação e convergência foi uma das condições da revolução.
A terceira época de refundações, de que hoje somos herdeiros, é certamente diferente. E diferente em primeiro lugar porque tem a marca da derrota: a transformação da URSS com os processos repressivos, o isolamento, a criação das castas dirigentes, a modificação das políticas internacionais – do apoio ao Kuo-Min-Tern de Chiang Kai Chek até ao Pacto Ribbentrop-Molotov – e a consequente transformação da 3a Internacional e dos seus partidos em parte deste aparelho de dominação, marcou o fracasso de várias gerações da esquerda. As rupturas surgiram por isso sob o signo dessas derrotas: as cisões foram provocadas pelos processos de Moscovo, pela repressão na Hungria em 1956, pela repressão na Checoslováquia em 1968, sempre o signo da derrota. Compreende-se assim que, durante os anos cinquenta e sessenta, foi a revolução colonial (China, Argélia, Cuba, Vietname, colónias africanas) que polarizou a esquerda europeia que não se reconhecia na URSS.
As forças mais vibrantes das novas esquerdas vieram depois a ser formadas com o impulso do Maio de 68, o único processo revolucionário que, na Europa, não decorreu do fim da guerra mundial (Grécia) ou da agonia de uma ditadura (Portugal e Espanha). Mas, se esses processos disputaram a hegemonia das organizações reformistas tradicionais, não permitiram em nenhum caso constituir um novo campo da política que gerasse uma alternativa.

A GENEALOGIA DO SECTARISMO
Ora, a constituição desse novo campo é hoje o desafio mais importante da política. Ao contrário dos fundadores socialistas do século XIX, não se está a criar o primeiro movimento dos trabalhadores, independente da burguesia. Ao contrário da geração seguinte, não se está a formar nenhum partido beneficiando do impacto e da imagem de uma revolução triunfante. Está-se simplesmente a reconstruir depois dos escombros das derrotas.
Assim, é essa contradição entre a tensão política e a dificuldade de formar novos partidos de massas que cria uma nova genealogia do sectarismo.
Em alguns casos, é certo que se formaram partidos com influência alargada: a LCR em França, o SWP a partir dos movimentos anti-guerra em Inglaterra, os socialistas de esquerda na Dinamarca, o partido maoísta na Noruega, e alguns outros. Esses partidos confrontam-se agora, e inevitavelmente, com a necessidade de constituírem um campo político novo. Na Dinamarca formou-se a Aliança Verde-Vermelha. Em França a LCR lança agora a proposta de um partido anti-capitalista, que vai ser formado em 2008. O SWP formou uma aliança eleitoral com sucesso, o Respect. Todos eles têm em comum a necessidade de criar esse campo político que seja portador de capacidade de mobilização política e de alternativa em relação aos partidos tradicionais. Nenhum desses novos partidos europeus, excepto a Refundação Comunista italiana, nasce de uma cisão de um partido de massas (neste caso o PCI). O PSOL brasileiro nasce também de uma cisão do PT, mas num caso como noutro os partidos estão muito marcados pela sua origem. Já voltarei a alguns dos aspectos da dificuldade da criação da alternativa.
Agora quero sublinhar a razão profunda para a emergência do sectarismo nas organizações que foram incapazes de ganhar este tipo de influência, e que têm sido tão comuns nos movimentos populares modernos dos finais do século XX – e que continuará nos nossos tempos. Essa razão é o fracasso. O sectarismo é uma expressão do desajustamento entre a fraca capacidade militante e a dimensão imensa das tarefas de resposta à globalização capitalista. É, por isso, uma forma de sublimação: as correntes sectárias procuram sobreviver alimentando a fantasia acerca de processos revolucionários que são imaginados, porque essa é a derradeira condição para a sua definição militante. Sem essa fantasia, não sobra nada. A militância proclamatória é indiferente à aprendizagem da luta social.
O sectarismo tem de ser puro, não se pode aproximar de nenhuma outra corrente, não pode colaborar com ninguém. O sectarismo é o ódio absoluto ao que lhe está mais próximo. O sectarismo é a cobardia política dos desistentes da construção dos partidos com influência de massas.


A GENEALOGIA DO SECTARISMO
Os exemplos do sectarismo abundam. Não quero construir aqui uma galeria, mas alguns casos paradigmáticos ajudam a ilustrar o argumento.
Quando o Bloco se formou, tanto o MRPP quanto o POUS se recusaram a integrar o processo de convergência. Ainda bem que o fizeram. O MRPP porque se considerava a única organização de esquerda, e seria portanto impensável que não tivesse sido consultado primeiro. O POUS porque tinha em mãos a preparação de uma conferência internacional em Paris e não se podia distrair dessa tarefa.
A Política Operária, que chegou a discutir internamente se devia ou não integrar-se no Bloco, e que o recusou, manifestou-se sempre pelo empenho em denunciar a “social-democracia”do BE. É hoje uma corrente polarizada pela nova linha do PCP, sendo um exemplo de uma “aliança permanente” com a direcção de Jerónimo de Sousa e Francisco Lopes, tanto no suporte a actividades internacionais quanto na vida sindical, de que a eleição da Fenprof e do SPGL foram exemplos.

Em todos os casos, o sectarismo tem como estratégia a preparação de uma cisão a partir do argumento de que cada apreciação táctica é portadora de bifurcações históricas – todos os debates são emergências estratégicas, todos são dramáticos, todos são definitivos, todos demonstram a eminência da traição e são portanto forçosamente conducentes à diferenciação.
Se analisarmos os debates internos do Bloco, é isso que confirmamos: a Ruptura-FER denunciou a Marcha pelo Emprego, porque era uma cedência ao PS; recusou a política do Bloco para a campanha do referendo sobre o aborto, porque era uma cedência ao PS. Dirá o mesmo de qualquer divergência concreta que tenha, que será sempre valorizada como um debate definitivo contra a traição. A consequência, no entanto, é a mais perversa: a proposta de mudar a natureza do Bloco – que nasceu como alternativa ao PS e ao PCP – para o transformar num satélite do PCP, com o “pacto de unidade permanente” com o PCP. Isabel Faria, desta corrente, levou recentemente o argumento ao paroxismo, explicando que o PS “é um partido de direita”, uma forma elegante de afirmar que a única esquerda é o PCP e que só resta ao Bloco subordinar-se ao PCP. Triste evolução de uma corrente trotsquista que acaba a argumentar que o partido estalinista puro é a única esquerda que existe.


UMA ORGANIZAÇÃO QUE ESCONDE DO BLOCO O QUE PENSA DO BLOCO

A Ruptura-FER é um caso distinto, porque aceitou integrar o Bloco, o que podia ter constituído um novo começo para uma organização que tinha sempre escolhido o fechamento.
A sua história, aliás, é das mais bizarras da esquerda portuguesa. Quando o PSR foi formado pela fusão entre a LCI e o PRT (actual Ruptura-FER), foi poucos meses depois abalado por uma divergência “estratégica” que levou à saída da actual FER: segundo esta corrente, o que definia um revolucionário seria a sua consagração ao princípio do partido único como única forma reconhecível do socialismo. Ao sair do PSR, a actual FER juntou-se ao POUS, do qual também cindiu pouco tempo depois.
Vejamos como se apresenta a FER hoje em dia:
“o Ruptura-FER conta apenas com cerca de uma dezena de quadros e com uma centena de militantes e elementos periféricos, e apenas tem um trabalho estrutural na academia coimbrã. Não pode ceder a qualquer tentação sectária e auto-proclamatória de fundar já o “partido revolucionário” em Portugal. Assume-se somente como um “núcleo fundacional” para a construção de um movimento pelo partido revolucionário, tarefa essa que levará anos e da qual não conhecemos os ritmos.”
E conclui:
[a Ruptura-FER] Agora atravessa uma mediação “movimentista” com o Bloco, amanhã pode passar pelo slogan “partido único dos revolucionários.” (Congresso da FER, 2000)
Hoje está no Bloco, amanhã não estará. Em consequência e desde então, a Ruptura-FER mantêm secretos os seus textos de congresso, incluindo o mais recente em que discutiu quando abandonaria o Bloco. A Ruptura-FER entende que é demasiado perigoso que seja conhecida a sua opinião sobre os militantes do Bloco, e por isso impede que os seus textos sejam conhecidos.

ALGUMAS CONCLUSÕES

A partir desta memória e das reflexões que ela suscita, quero tirar agora algumas conclusões para depois sugerir implicações para a estratégia da esquerda em Portugal.
A primeira conclusão é esta. A definição dos campos políticos só se faz perante bifurcações históricas, perante grandes questões estratégicas que definem os rumos do movimento operário e popular. Os alinhamentos e realinhamentos de forças fazem-se então de forma cortante. São improdutivos e inúteis noutras circunstâncias. Os alinhamentos de hoje fazem-se perante as guerras de Bush e perante as políticas neo-liberais. Querer delimitar novos partidos a partir da consideração táctica sobre a política autárquica, ou dos movimentos sociais, é uma irresponsabilidade que abandona a luta dos trabalhadores.
Em segundo lugar, os grandes partidos que cumpriram funções históricas nasceram, assim, ou de redefinições a partir dos partidos e das organizações de massas – social-democratas, anarquistas, sindicalistas ou comunistas – ou da unificação de diversas correntes, incluindo algumas que eram portadoras da memória e de influência dos partidos de massas. Nunca nasceram de pequenas organizações. A questão essencial da política é criar e ampliar essas convergências, é multiplicar as forças.
Em terceiro lugar, e mais importante, as pequenas organizações não transcrescem em grandes partidos. As pequenas organizações serão sempre pequenas. Nada se transforma no que não é. Por uma simples razão: a política de um partido com influência social não tem nenhuma comparação com a de uma pequena organização de propaganda. Um pequeno partido não sabe fazer grande política, só faz pequena política.
Por duas razões. A primeira, dita brutalmente, é esta: a propaganda já não serve para nada. A propaganda era uma forma de conduzir ideias quando o movimento operário tinha o monopólio da leitura e a hegemonia de processos de informação entre um sector social. A esquerda produzia então correntes literárias novas. A esquerda alfabetizava os operários. A esquerda inventava meios de comunicação. A esquerda tinha a hegemonia de algumas culturas – da “economia moral da multidão”, como dizia E.P. Thompson – mesmo quando a burguesia tinha a hegemonia geral das ideias na sociedade, e apesar disso. Havia meios de comunicação da esquerda que eram dominantes na sua área de influência: a Batalha era um dos diários mais lidos em Portugal antes da ditadura.
Ora, hoje a esquerda não tem nem pode ter hegemonia sobre nenhum dos meios de comunicação. Pode e deve disputá-los, mas não os domina nem dominará. A televisão numa sociedade de mercado será sempre uma cultura hegemonizada pela direita. 
Assim, a propaganda morreu. A comunicação de ideias só se pode fazer por movimentos, porque são eles que criam sujeitos sociais transformadores. Só a luta social pode repor o debate de ideias e dar lugar às ideias novas. Um pequeno partido nunca o pode fazer.
A segunda é ainda mais importante: a pequena organização de propaganda faz uma política que não disputa nada da influência dos partidos tradicionais. E não sabe fazer outra, porque não tem a experiência necessária para tal. Para vencer o PS, que é a tarefa estratégica determinante da criação de uma esquerda socialista, é preciso ter a capacidade de representar as lutas e aspirações sociais. No parlamento, nas autarquias, em todas as instituições. Em movimentos sociais e na acção política. É preciso enfrentar, como sempre, o binómio reforma-revolução, com a solução que conhecemos na esquerda socialista: com um partido capaz de defender os interesses imediatos de todos os sectores oprimidos. Um partido que não lute pelos interesses imediatos dos trabalhadores não serve para nada. E é preciso, nesse movimento, ter a coluna vertebral de capacidade de acção política que contesta abertamente a dominação burguesa que é a injustiça fundadora da sociedade de classes.

POLÍTICA UNITÁRIA, DE NOVO

Até agora, discuti a política unitária a partir dos processos de convergência necessários para formar um campo político alternativo na sociedade. Foi assim que o Bloco de Esquerda nasceu. E é por isso que é um movimento estratégico, o que quer dizer que é a única forma de fazer política de massas que pode ser concebida pelos seus militantes. Na esquerda alternativa em Portugal, não existe nem vai existir nada para além do Bloco.
Nenhuma pequena organização pode substituir este movimento, simplesmente porque não pode cumprir nenhuma das suas tarefas.
É certo que este não foi o primeiro processo de convergência na nossa história recente, embora os casos sejam raros. O mais relevante foi o da UDP em 1975, que nasceu da fusão de organizações que se consideravam opostas programaticamente e que mantinham relações de intensa hostilidade, mas a pressão da revolução redefiniu essas fronteiras. Foi assim que se formou a organização revolucionária mais influente durante os anos da revolução.
O Bloco, vinte anos mais tarde, tem características diferentes. É um partido pós-queda do Muro de Berlim. É influenciado pelos movimentos alter-globalização, que estavam no apogeu em 1999. É influenciado pela derrota do referendo do aborto, em 1998, que demonstrou a urgência de novas conjugações de forças para novas políticas – e o fracasso das anteriores. Definiu-se para políticas e não como um reagrupamento ideológico. E criou assim os pontos cardeais de referências ideológicas fortes, porque políticas: a defesa dos serviços públicos no combate ao liberalismo, a oposição à guerra infinita, a centralidade do trabalho, as políticas emancipatórias. Conseguiu para essas políticas uma expressão de apoio social alargado – algumas centenas de milhares de eleitores – no contexto do regime democrático de dominação burguesa. E tem apresentado a única alternativa de esquerda socialista. É ainda muito pouco.
A principal diferenciação política actual dentro do Bloco determina-se por isso sobre esta mesma questão essencial: ou a esquerda precisa de um instrumento de acção política como o Bloco, que quer ser maioritário, ou precisa de romper o Bloco para criar um novo partido para a propaganda revolucionária, que quer ser minoritário porque tem medo da luta política – satelizar-se em relação ao PCP é ter medo da luta política e da dificuldade de criar uma alternativa. É a resposta a esta escolha que determina quem quer e quem não quer o Bloco, quem aceita e quem rejeita as políticas de convergência como a condição para refundar a esquerda socialista.
É certo que há outras questões de definição estratégica que são importantes e que talvez no futuro venham a ser mais importantes. Mas esta é a primeira, como se verificou pela última Convenção.

O EXEMPLO DA POLÍTICA UNITÁRIA NO REFERENDO DO ABORTO

A importância da escolha do modelo de partido e da sua definição em políticas torna-se muito clara se estudarmos as lições da principal vitória social da história do Bloco, o referendo sobre a descriminalização do aborto em 2007.
Durante esse período, tivemos um debate interno vivo. A orientação do Bloco é bem conhecida: concentrar toda a argumentação no tema da escolha que era colocada ao voto – o direito de iniciativa da mulher, deixando de ser criminalizada por isso, e sendo apoiada pelos serviços de saúde. Essa escolha era difícil, porque excluía outros objectivos secundários, como eventualmente a popularização de temas feministas na sociedade. Rejeitamos essa alternativa, simplesmente porque sabíamos que o referendo só podia ser ganho perante adversários poderosos se a população fosse dramaticamente confrontada com a realidade do aborto clandestino e da perseguição social às mulheres, se ficasse claro que a escolha era essa e só essa. Tínhamos razão e a campanha provou-o categoricamente.
Mas esta escolha tinha ainda uma consequência, que era a necessidade de unir todas as forças possíveis do Sim, a começar pelo PS e pelas forças do centro e da direita que pudessem ser polarizadas no voto. Foi o que fizemos. Queríamos que toda a base de apoio do governo, que é maioritária na sociedade, fosse mobilizada para o Sim. A política unitária decidiu a vitória no referendo.
Estas duas escolhas foram discutidas dentro do Bloco. A primeira, por militantes feministas que entendiam que se devia incluir a reflexão sobre outros direitos das mulheres no argumentário da batalha. Em geral, a conclusão posterior dessas militantes foi de que a escolha tinha sido correcta.
A segunda, a da política unitária, por quem entendia que o referendo devia ser conduzido contra a criminalização das mulheres e, simultaneamente, contra a política de saúde do governo Sócrates. Estava portanto excluída e condenada qualquer aliança ou convergência com o PS.
Como é bem sabido, esta era a posição do PCP, que foi repetida ipsis verbis dentro do Bloco: contra o referendo; se o referendo é convocado, propor que o seja noutro momento e não quando são precisas mobilizações políticas contra o governo; se é convocado, opor-se a qualquer movimento unitário que abranja o PS; se o Sim ganha, considerar que a vitória reforça o governo, o que prejudica a esquerda. Afirmamos então, e insistimos agora, que essa orientação preferia a vitória do Não e que era por isso irresponsável no combate ao conservadorismo e à direita.
Mas a corrente sectária foi mais longe. Teórico ousado, Gil Garcia escreveu então no jornal “Ruptura” que a política do Bloco, de aliança com o PS e com todas as forças pelo Sim (do PC à direita), repetia os erros trágicos dos que tinham traído a revolução e a República espanhola perante os fascistas de Franco, ao fazer no referendo esta aliança com os inimigos, com esse PS que governa com tantos ataques contra os trabalhadores.
Se o leitor ou a leitora não estivessem já avisados sobre a infindável capacidade dramática do sectarismo e sobre a sua vontade de transformar qualquer questão táctica numa diferença estratégica de vida ou morte – a vitória do fascismo, nem mais! – talvez estranhasse este delírio metafórico. Mas aconselho-os leitores a estranharem somente a falta de consequência: se a política do Bloco levava à vitória dos inimigos, como a aliança de alguns republicanos com a burguesia levou à derrota da revolução, então só surpreende que traição de tal envergadura não fosse objecto de grande confrontação. Não foi. Assim como começou, assim foi assunto esquecido. Nunca mais se falou no assunto. Agora, depois da traição consumada, arrastando numa torrente histórica o referendo, a República e a revolução espanhola, está tudo bem. Uns meses depois, a aliança com os inimigos do PS já merecia os maiores elogios. Em pouco tempo, Espanha ficou muito longe, a República foi esquecida e essa revolução foi enterrada.
Ficamos por isso a conhecer quatro conclusões.
A primeira, que a política unitária se determina pelos objectivos da acção. Deve querer ganhar o que quer ganhar, com todos os que são precisos para ganhar.
A segunda, que o sectarismo rejeita sempre a política unitária, porque não cuida da relação de forças social, mas sim do seu próprio espaço interno. O sectarismo não faz política para a sociedade, faz debate para o militante que espera influenciar hoje.
A terceira, que em nome desse debate, se pode fantasiar e transformar uma escolha táctica (com quem se faz a aliança para ganhar um referendo sobre o aborto) numa questão de escolha entre revolução e contra-revolução (em Espanha).
A quarta e mais importante: o sectarismo não se leva a sério, porque pode aceitar no dia seguinte o que na véspera era a prova provada da capitulação perante a contra-revolução. Esta é a pior deformação de uma organização de propaganda, a inconstância das ideias, o utilitarismo dos argumentos, o fingimento das razões. Nada vale porque vale tudo.

MAIS UMA VEZ, A POLÍTICA UNITÁRIA

Finalmente, a política unitária é incontornável por uma última razão. É que o Bloco tem de chegar mais longe. Mas para chegar mais longe há também vários caminhos, e esse foi o debate da Convenção.
Há um caminho, que é transformar o Bloco num apêndice do PCP. E há outro, que é procurar fazer do Bloco o eixo de uma alternativa ao PS.
Para os que defendem uma “unidade permanente” com o PCP, o caminho é criar um pólo que enfrente o PS na resistência social. Em coerência, propunha-se o Pacto PCP-CGTP-BE (mesmo que depois argumentando que a CGTP seria o “principal instrumento” do governo”).
Essa proposta suscita duas dificuldades. Ambas irreparáveis. A primeira é que não serve para nada: um acordo político entre o Bloco e o PCP não acrescenta nada à luta social, onde essa convergência se faz naturalmente e todos os dias, sempre que é útil (nas acções sindicais, nos votos no parlamento, etc.). O “Pacto” dá-lhe uma forma política que o isola, e esse é o sinal da sua derrota. Esse Pacto, aliás, não polariza nada nem ninguém. E a segunda é que a sua concretização seria sempre o desaparecimento do Bloco: a “unidade permanente” e o “pacto” só podem significar a adesão à CDU ou a submissão sindical. No referendo do aborto, esta política conduzia à derrota.
O Bloco foi formado para rejeitar terminantemente esse caminho, que é uma capitulação.
Por isso, o Bloco escolheu outro, que é o que tem prosseguido com a construção de programas alternativos à política do PS – e tem sido assim que temos conseguido a participação de militantes que fizeram parte da sua história no PCP e que não aceitam o sectarismo. Entendemos que a confrontação é mais forte e que contribui muito mais para dividir o PS e polarizar sobre a sua influência, se se basear em políticas mobilizadoras – como têm disso exemplo as nossas propostas da reforma fiscal, da transformação do sistema da segurança social, da socialização dos sectores estratégicos e da reforma dos serviços públicos. Foi por isso que adoptamos a política vencedora no referendo do aborto. Foi por isso que escolhemos a criação de movimento social em torno do serviço nacional de saúde. E, em cada um desses movimentos, procuramos polarizar na sociedade uma alternativa, sabendo que ela tem impactos dentro da base do PS.

Esses caminhos são sempre contraditórios. A aliança com grupos independentes, como a lista “Lisboa é Gente”, impõe compromissos e cria dificuldades que não conhecíamos até agora. A relação com dirigentes ou activistas críticos do PS implicará, se se desenvolver a diferenciação no PS, outras dificuldades de afirmação de políticas coerentes, sobre questões europeias ou sociais. Mas a experiência prova que não podemos esperar ganhar novos sectores para a política socialista de esquerda se deles nos afastamos ou se lhes impomos preconceitos sectários.
Mas, sobretudo, a experiência recente provou como é insegura ou insuficiente a hegemonia de José Sócrates sobre a base do PS. Episódios anteriores, como o da UEDS, provaram que existe uma tensão que a política liberal só agrava. Agora, depois das presidenciais e das eleições de Lisboa, essa tensão renasceu. E, se não sabemos como se vai desenvolver, sabemos pelo menos que a disputa desse processo é fundamental para o futuro imediato.
Para voltar ao início deste artigo, essa é a questão que determina o conteúdo das políticas unitárias: criar um novo campo político, para destruir o sistema partidário actual com a hegemonia da alternância do bloco central, e refundar a esquerda para as suas políticas socialistas. Só assim ganha corpo uma alternativa na sociedade.
O socialismo não é uma utopia inalcançável. Só é preciso organizar milhões de pessoas para uma nova política. Já não temos toda a vida para o fazer.

* Francisco Louçã é dirigente e deputado do Bloco de Esquerda.









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