quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tintim e a nostalgia


Antes do filme de Spielberg.

[O ruído mediático sobre a apresentação do filme de Steven Spielberg "Tintim e o Segredo do Unicórnio" é uma boa ocasião para voltar a publicar este artígo de Hendrik Patroons, escrito em 2007, por ocasião de uma exposição que o museu Beaubourg, em Paris, dedicou a Hergé].


A trajetória ideológica de Georges Remi (1907-1083), aliás Hergé, um homem profundamente afecto à monarquia belga, é conhecida: em jovem combinava um catolicismo rígido com uma atitude política profundamente reaccionária; durante a Ocupação, tinha ilusões com a nova ordem encarnada pelos nazis; depois da guerra, evoluiu até um conservadorismo firme, com um pedaço de humanismo, mas politicamente desenganado. Continuou, sem dúvida, a frequentar os seus antigos amigos da extrema-direita.

As aventuras de Tintim e Milou, que estão hoje nas livrarias não são o simples reflexo da visão do mundo transmitida pelo cidadão Hergé. Ocorre o mesmo com a obra de todo o verdadeiro artista. O facto de um produto artístico escapar à unidimensionalidade política do seu criador, e ser dirigido, sem ser conscientemente e através de múltiplos níveis de interpretação, ao mundo em geral, faz parte quiçá da definição da arte.

Federico Engels dizia que tinha aprendido muito mais sobre a sociedade francesa com um defensor da grande propriedade, como Balzac do que com qualquer manual de economia política. Pelas suas contradições internas, a crítica social reaccionária pode trazer à luz o que o progresso burguês prefere ocultar.

Os 22 álbuns a cores, dos quais "Tintim no País dos Sovietes" faz parte e cujos primeiros números foram retocados e coloridos, depois da Segunda Guerra Mundial, constituem o corpo central do mito Tintim. Mito que se converteu num fenómeno mundial, mantido conscientemente com humor e ironia, pelos tintinófilos, tintinólogos e demais tintinólatras.

Não esqueçamos, sem dúvida, o aspecto comercial da empresa. Hergé era artista, mas também era empresário e trabalhava em estreita colaboração com o mundo da edição. Moulinsart, empresa de Rodwell, que depois foi marido de Fanny, a viúva de Hergé, é uma mina de ouro. O que prova que o romanticismo juvenil pode muito bem adaptar-se ao mercado capitalista.

Mas quem diz mercadoria supõe que esta responde a uma necessidade, que tenha portanto um valor de uso e não só um valor de troca. Como explicar esta necessidade? Citemos, para imitar atintinologia de alto nível, um grande pensador: "Agora, o problema coloca-se aqui da necessidade interior de uma semelhante necessidade, com os outros domínios da vida e do mundo. Todas as esferas diferentes da vida existem. Encontramo-las como tal ao nosso redor. Entretanto, a ciência não se contenta com estes factos, ela procura qual é a sua necessidade recíproca e as relações internas que as unem." (G.W.F. Hegel, Estética).

Adaptações ao cinema

Não tenho a pretensão de explicar esta necessidade tintinesca. Só posso avançar com alguns elementos de resposta. O que me choca, em primeiro lugar, é a nostalgia dos tintinófilos (aos que pertenço) pelos seus sonhos de infância, suscitados por cada leitura de uma das aventuras de Tintim, sobretudo as mais antigas. A criança não se reconhece no mundo contra-imaginário do quotidiano que a rodeia e que contradiz a retidão e a vida aventureira de Tintim. Baudelaire expressou esta nostalgia em "A Viagem": "Para a criança, amante dos mapas e dos selos/O  universo é igual ao seu amplo apetite/Ah! Quão grande é o mundo à luz as lâmpadas! Quão pequeno é o mundo aos olhos da recordação!"

Parafraseando Marx, quando comenta a função escapista da religião, pode dizer-se que Tintim é "o suspiro da infância abatida, a alma de um mundo infantil sem alma". É o ópio das pessoas dos 7 aos 77 anos. Os álbuns do último período oferecem uma desculpa suplementar à nossa nostalgia, porque dirigem-se, através do seu humor, também aos adultos, como mostra por exemplo "As jóias de Castafiore". Outros elementos jogam sem dúvida um papel neste desejo do passado. A moda posmodernista rechaça as grandes interpretações históricas e prefere projecções nostálgicas do passado. Uma produção cinematográfica centrada no começo do século XX é a prova disso.

A banda desenhada não escapa a isso. Benoît Peeters sublinhou que, desde há alguns anos, "a banda desenhada europeia alimenta-se em grande medida da nostalgia. Blake e Mortimer, Marsupilam, Lucky Luke e muitos outros conheceram novas aventuras, depois do desaparecimento do seu criador". Esta nostalgia pela banda desenhada antiga e pelo período em que apareceu materializou-se incluso, em 1990, com o filme "Dick Tracy", de Warren Beatty. E não é casualmente que Steven Spielberg, grande conhecedor da alma infantil, acarinhou o projecto de levar ao cinema algumas aventuras de Tintim.

Censura

Concluímos esta homenagem com uma anedota. Há uma dúzia de anos, encontrei-me, em Gante ("essa jóia dos Ardenas belgas, celebre no mundo inteiro pelos seus campos de tulipas",segundo o jornal sensacionalista París Flash) com uma senhora de Shangai, que antes tinha ajudado nas suas lides com os serviços de imigração. Eu levava uma camiseta Tintim e, ao ver-me, exclamou "Tinn-Tinn", é o nome que o nosso herói tem na China.

Tintim não era um nome desconhecido na República Popular de Mao e a Revolução Cultural, tal como Didi em "O Loto Azul", não conseguiu decapitá-lo. Os álbuns circulavam em edições piratas, num formato diferente e impressos em papel de má qualidade. Foi em Amsterdão onde tive conhecimento da sua existência. Uma grande livraria da Leidse Straat vendia-os baratos. Mas isso mudou! Antes inclusivamente da China ser admitida na Organização Mundial do Comércio, as edições Casterman e China Children Publishing House assinaram um acordo: todos os álbuns estão já à venda no mercado do Império do Meio. Todos? Pois bem, não. Há um que falta: "Tintim no Tibete". Mil milhões de raios, os piratas não vão parar!

Publicado em Rouge nº 2189, 18/1/2007


Tradução: António José André

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