sábado, 5 de novembro de 2011

Literatura Mundial e Linguagens


[O poeta sueco Tomas Tranströmer, que ganhou este ano o prémio nobel da literatura, escreve sobre a morte, a história, a memória e é conhecido pelas suas metáforas. A propósito da literatura e de outras linguagens, eis um texto de Tariq Ali, publicado em International Viewpoint - 1/12/2010]

Literatura Mundial e Linguagens
Tariq Ali*
A globalização tem produzido uma cultura muito provinciana. O turbo-capitalismo tem muito pouco tempo para a cultura e para os livros. "Dom Quixote" de Cervantes é provavelmente a primeira peça da literatura mundial que, em si mesma, foi uma síntese das culturas muçulmana, cristã e judaica.
O mundo da literatura e das línguas preocupa-nos a todos. Não é um assunto destinado somente a especialistas. Atrai-nos a todos. Primeiro, vamos falar sobre literatura mundial. Existe uma literatura mundial? A resposta é obviamente, sim. Existe uma literatura mundial. Vista como tal? Isso depende das línguas em que se traduz. Existe uma literatura mundial em línguas nacionais? Não sabemos disso. A razão é que muito pouca literatura é traduzida da maior parte das línguas nacionais para os principais idiomas.
Hoje, em dia, a linguagem imperialista dominante é, claramente, a inglesa. A segunda é a espanhola. Embora a língua espanhola não seja imperialista, como já o foi. Por isso, é falada em toda a América Latina, com excepção do Brasil. Claro que também é falada em Espanha e na costa oeste dos Estados Unidos, onde existe uma grande população hispânica. A questão é: a literatura que aparece na esfera do mundo literário depende do quanto é traduzida para os idiomas do mundo? De facto, não é tanto assim.

Os lvros na era globalização e do turbo-capitalismo
O impacto da globalização na literatura mundial tem sido a compartimentação. A globalização tem produzido uma cultura muito provinciana. Hoje, existe menos conhecimento sobre as diferentes partes do mundo do que há quarenta anos atrás. Esta falta de compreensão sobre o resto do mundo afecta tudo. Por exemplo, afecta o que se lê nos jornais ou se assiste na televisão. Mais espaço nos medias foi dedicado a outras partes do mundo. Mas há muitas razões para isso. Uma razão é que o turbo-capitalismo tem muito pouco tempo para a cultura e para os livros. 
Cada vez mais, os livros são publicados, em todo o mundo, a partir da lista de best-sellers do New York Times. Na Europa e na América do Sul, onde costumavam ser muito orgulhosos das suas línguas, agora produzem, muitas vezes, o que está na lista de best-sellers. A sua primeira consideração é: a partir desta lista, quanto podemos pagar? A sua segunda consideração é: quanto dinheiro é que podemos fazer com isso? Isto está a criar, essencialmente, a deformação e uniformidade culturais. Isso é muito prejudicial para a literatura mundial.
Mesmo em países como a França onde costumavam ter muito orgulho da sua língua, desde os dias do Iluminismo, considerado um sumário dos valores do Iluminismo francês, encontram-se romancistas, escritores e académicos nas filas das editoras que publicam em Inglês. Isso nunca foi assim antes. A razão é que eles querem ser lidos na língua imperialista, em particular. Querem ser lidos nos Estados Unidos. O impulso da globalização em termos de economia e política, baseava-se no consenso de Washington, após o colapso do comunismo na União Soviética. Agora a cultura segue o mesmo caminho.

Literatura para Nobel
Além da lista de best-sellers, temos a literatura criada para o Prémio Nobel. Neste caso, o Comité Nobel decide o que é um belo romance. Digamos que um bom romance escrito por algum escritor etíope ou somali é levado ao conhecimento do Comité. A primeira pergunta é: o romance foi traduzido para francês? Pois eles preferem romances traduzidos para francês. Se por acaso, o romance foi traduzido para francês, é considerado candidato a Prémio Nobel. Se o autor recebe o Nobel, o seu livro tornar-se-á parte da literatura mundial e das redes do mundo literário.
Essa literatura do mundo oficial, produzida por prémios e reconhecimento feito por um pequeno grupo de pessoas, sentado ironicamente na Escandinávia, em nome do inventor da dinamite, não é um critério suficiente para determinar o que constitui a grande literatura. Muito antes dos Prémios Nobel, todas as questões foram suscitadas num romance que fez um trabalho de âmbito universal. Esse romance foi escrito, em Espanha, no século XVII: "Dom Quixote" de Cervantes.

Dom Quixote: a primeira novela mundial
Nós sabemos sobre este romance, porque foi traduzido em muitas línguas.  Foi, por exemplo, traduzido para o chinês no século 18. O que é mais interessante nesta novela é que aqueles que não conhecem a língua espanhola e a história espanhola, não lhes é possível entenderem esta novela. No entanto, é muito importante romance.  Há uma nova tradução bonita feita por Edith Grossman. A introdução no livro é de Harold Bloom e nada diz sobre o contexto em que este romance foi produzido.
O que realmente queremos saber é o contexto espanhol em que este romance foi escrito e o que este grande escritor estava a tentar dizer-nos. Ele estava a tentar, de fato, dizer-nos muitas coisas. A Espanha de que fala Cervantes foi o único país onde co-existiram três civilizações durante centenas de anos, e essa Espanha foi destruída. Durante muitos séculos, muçulmanos, judeus e cristãos civilizações co-existiram e debateram em Espanha.
Fora destes debates e discussões cresceu a cultura andaluz, a poesia e a filosofia, que eram temidos em Bagdad como muito radical e muito questionadora.  Esta foi uma civilização surpreendente em muitos aspectos.  Mas foi destruída em dois anos-chave. Em 1492, o ano marcado pela expulsão dos judeus da Espanha. Os judeus foram avisados para saírem ou se converterem. Converterem-se disseram-lhes pois se fossem capturados a fazerem os seus rituais judaicos, seriam queimados até à morte. A fim disso, foi criada a polícia secreta chamada Santa Irmandade.
Considerando o actual tratamento dos palestinianos por parte de Israel e a raiva que ele gera, é fácil esquecer que a civilização muçulmana e judaica coexistiram, tanto no mundo árabe como na Andaluzia e na Sicília. Os muçulmanos eram a classe dominante que protegia os judeus. Houve alguns ataques a judeus na Andaluzia, mas eram muito poucos e os judeus foram protegidos em grande porte.  Esta coexistência criou uma cultura muito rica. Quando esta cultura foi destruída pela Reconquista, ambas as civilizações foram exterminados.
O que foi dito aos judeus, em 1492, foi dito aos muçulmanos, 6º anos depois: que saíssem ou se convertessem. Como os muçulmanos costumavam tomar banhos rituais três vezes por dia, foram proibidos de o fazer. Ironicamente, tomar banho tornou-se um crime.  Os balneários públicos foram destruídos.
Foi nesta Espanha que nasceu e cresceu Cervantes. Todas as evidências apontam para o fato de ele pertencer a uma família judia da classe médica. Converteram para se salvarem e porque eles não queriam deixar o país. Quando Cervantes começou a escrever este romance, nas primeiras páginas, diz curiosamente que não o escreveu. Os leitores ficam chocados. Ele diz como:
"Um dia, quando estava no mercado Alcana, em Toledo, chegou um menino para vender alguns cadernos e papéis velhos a um comerciante de seda. Como gosto muito de ler, mesmo papéis rasgados nas ruas, fiquei comovido com a minha natural inclinação para pegar num dos volumes que o rapaz estava a vender. Vi que estava escrito em caracteres e sabia que era árabe. Reconheço que não os podia ler. Olhei em volta para ver se algum mouro, que conhecesse castelhano, os poderia ler para mim. Morava na vizinhança e não seria muito difícil encontrar esse tipo de intérprete, pois se procurasse um falante duma língua melhor e mais velha, tê-lo-ia encontrado.''

A melhor e mais velha língua era a hebraica
Faz dois pontos aqui. Está a dar uma dica de onde vem e que a novela foi realmente escrita em árabe. Porque faz isso? Não é por diversão. É um protesto literário, pois já tínhamos uma cultura em que o hebraico e o árabe floresceram. Ele também se está a proteger por causa da Inquisição. Tudo é cuidadosamente pensado antes de ser posto no papel. Na minha opinião, o objectivo real de Dom Quixote é a Igreja Católica. 
Ele faz isso de uma maneira muito especial, porque se fosse permitido abertamente, poderia ser julgado por heresia, blasfémia, e ser queimado vivo. Ele é muito cuidadoso do jeito que escreve. A sua novela está repleta de história. Isto é o que, curiosamente, faz do seu Dom Quixote um romance histórico mundial. Dom Quixote de Cervantes é provavelmente a primeira peça da literatura mundial que em si mesma foi uma síntese das culturas muçulmana, cristã e judaica.

"Cidades de Sal" de Munif
Os outros escritores de que eu quero falar são modernos, escritores do século XX.  Um deles é definitivamente um grande romancista do mundo árabe Abdelrehman Munif. Alguns dos seus trabalhos foram traduzidos para Inglês. A sua trilogia "Cidades de Sal" é uma das mais devastadoras, satírica e brilhante descrição de um tipo particular de governantes árabes. As pessoas dizem que tem representado os governantes da Arábia Saudita. Sim. Mas o que ele diz sobre os governantes da Arábia Saudita também é verdade para os governantes de outros estados do Golfo. De certa forma, até mesmo sobre Hosni Mubarak. Munif não é tão conhecido como Naguib Mahfouz que, por sua vez, se tornou popular como Nobel. Naguib Mahfouz é também um grande escritor.
Contudo, Munif, na minha mente, é mais nervoso, mais exigente, levanta mais perguntas e dá muitas mais respostas. Em "Cidades de Sal", foi privado da sua nacionalidade saudita. Mas continuou a escrever. A última coisa que escreveu antes de morrer, foi uma trilogia sobre o Iraque. Espero que um dia seja traduzido para o Inglês. Mas a maneira como Munif escreveu sobre o Ocidente é bastante chocante. Embora alguns críticos alemães o elogiassem como mestre e John Updike revisitara o seu trabalho no New Yorker, por que escreveu assim Munif? Updike pensou que o que Munif escreveu não era um romance. 
Pode ser que não fosse uma novela para satisfazer Updike. Mas o que Munif escreveu é um grande pedaço de literatura árabe moderna. Uma obra de valor histórico mundial. Ele escreve sobre uma classe árabe dominante após a descoberta de petróleo. Retrata a simbiose entre a companhia petrolífera estrangeira e os líderes tribais nativos que não tinham ideia que estavam sentados sobre o petróleo. De repente, tudo muda para aqueles que colaboram com a empresa petrolífera estrangeira e mais tarde com um governo estrangeiro. A mensagem que permeia o livro é: o que estes governantes fariam depois de desaparecer o petróleo? As cidades tornar-se-ão areia novamente.
É uma mensagem poderosa. Arranha-céus sem qualquer significado desaparecerão.  Ele questiona os governantes: o que fazem para o seu povo? Mesmo em Damasco, onde viveu no exílio, não lhe foi dada muito espaço para falar. Como tinha uma língua afiada! Certa vez, deveria dar uma palestra. Não era permitido fazer propaganda. A mensagem espalhou-se de boca em boca. Mais de 5.000 pessoas compareceram. Definitivamente, a sua obra faz parte da literatura mundial. Mas quantos mais existem e escrevem em árabe?  Nós não sabemos como não foram traduzidos. E você pode ter o mesmo padrão de continente para continente.

Literatura negada pelo Nobel
Durante a Guerra Fria, o Prémio Nobel fez parte dela. Cada dissidente soviético conseguiu-o. Porém, houve algumas excepções, para ser justo. Mas o carácter do Prémio Nobel também pode ser determinado por julgar a quem ele foi negado. Gostaria de salientar o escritor indonésio, romancista, crítico literário e comunista Pramoedya Ananta Toer. Bloqueado pela ditadura de Suharto, durante vários anos, e mantido nas ilhas de Buro, sofreu de desnutrição. Toer e outros presos políticos mantiveram-se vivos pela ingestão de lagartos e outros animais pequenos. A ditadura não teve coragem de os matar. Mas quis matá-los lentamente. Na prisão, Toer começou a contar histórias para os seus companheiros para manter a sua moral elevada. Estas histórias tornaram-se a base para a sua trilogia "Buru", que escreveu na prisão.
E entretanto o regime enviava pregadores islâmicos e jornalistas para inspeccionar as suas mentes e incitá-los a tornarem-se crentes: "Não tenho dúvida de que esse ano, assim como nos anos anteriores, no início do mês de jejum, os meus companheiros e eu, teremos uma palestra feita por um funcionário religioso especialmente trazido do mundo livre, sobre a importância do jejum e do controle da fome e do desejo. Imagine o humor disto! "
Quando, após a queda da ditadura de Suharto, ele voltou, teve uma recepção de herói. Mas porque não aceitou um Prémio Nobel? Se alguém o merecia, seria ele. Não por causa das suas ideias políticas, mas pela qualidade da sua literatura. Há aqueles que pensam que a literatura deveria ser política. Eu não concordo muito com isso. Política, pelo menos, não à custa de obras literárias.
Toda a novela tem que ter estilo, forma e conteúdo. Toer tinha tudo. Em "She Who Gave Up", escreveu: "Assim como a política não pode ser separada da vida, a vida não pode ser separada da política. As pessoas que se consideram não-políticos não são diferentes, pois já foram assimiladas pela cultura política dominante. Apenas não sentem mais nada ".  Não é verdade, em qualquer parte do mundo?

* Tariq Ali é historiador, escritor, realizador de cinema e comentador
Tradução: António José André

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