Antonio Crespo Massieu*
Acaba de findar a Tour de France, neste ano do seu centenário. Um século no qual o ciclismo, o desporto em geral, a história, a política, o negócio… pedalaram juntos e, em demasiadas ocasiões, se confundiram Talvez desde sempre. Terreno resvaladiço onde o ciclista é utilizado pelo poder e não chegamos a saber em que medida é vítima ou consente essa manipulação.
A história que vou contar, e peço desculpas a quem já a conheça, tem a ver com essa zona cinzenta do desporto e também com o mais nobre que possa ter o ciclismo e os seres humanos. É a história de Gino Bartali, um dos melhores ciclistas da história, e, juntamente com Fausto Coppi, o maior dos italianos. Os dois ganharam 8 Giros e 4 Tours, no período 1936-1953. Isto tendo em conta que, de 1940 a 1946, não houve competições desportivas por causa da Guerra Mundial.
Nascido em 1914 numa povoação da Toscana, Bartali é homem de profundas convicções católicas e ideias políticas bem conservadoras. Nesta oposição entre os dois ciclistas – tão querida e fomentada pela imprensa desportiva, similar à que mais tarde enfrentaria Bahamontes e Ocaña ou Anquetil e Poulidor…- Coppi aparece como o representante das ideias de esquerda, a Itália das grandes cidades do Norte, nada religioso e, além disso, bonito, simpático, mesmo que imprevisível, melancólico e demasiado intuitivo ou submetido a fugas inspiradas em cima da bicicleta. Face a ele Bartali é, ou assim é apresentado, um católico conservador, de origem camponesa, feio ou pelo menos não tão atrativo como Coppi, tradicional na sua maneira de correr, um pouco rude ainda que atraia a simpatia das pessoas. Servindo o esteriótipo a luta entre os dois foi encarniçada ou, pelo menos, isso dizia a imprensa.
Para a história da Tour de France fica uma famosa fotografia na qual, em plena ascensão, nos Alpes, um dos dois aproxima do seu rival uma garrafa de água. A beleza da foto é o enigma: por muito que se olhe é impossível saber se é Coppi que passa a garrafa a Bartali ou este que a estende. A foto capta só o momento em que as duas mãos passam a garrafa de água, o instante da ajuda mutua que evita o desfalecimento. Supostamente, nenhum dos dois disse quem passou a água a quem. É um dos pequenos mistérios desta história. Está a foto e está, desmentindo tópicos, a amizade nascida entre os dois e a dor do amigo quando Coppi morre, em 1960, ao perecer de uma malária mal tratada.
E está a história, a política, o fascismo. Em 1938, Bartali corre na Tour e Mussolini ordena-lhe que ganhe. Consegue-o: é a sua primeira Tour. O Duce exibe orgulhoso o triunfo, o ciclista, o “homem de ferro”, assim era apodado, vem a converter-se em símbolo ou emblema do fascismo. Ele não faz nada para o evitar. Limita-se, nos anos da guerra, durante os quais as competições ciclistas foram suspensas, a treinar-se. Percorre incansavelmente as estradas e caminhos da Toscana, com paragens frequentes em igrejas, conventos, abadias – todo o mundo conhece o seu fervoroso catolicismo - escala postos fronteiriços não para de fazer quilómetros; supostamente, atravessa todos os controles, os carabinieri não o param o se o fazem é para o saudar e recordar as suas vitórias; nem sequer as camisas negras da República de Saló o interrogam ou duvidam da sua palavra. É uma lenda viva, condecorado pelo Duce, exemplo do desporto na nova Itália do Fascio.
Este constante treino permite-lhe estar en forma e ganar a Tour quando esta regressa, em 1948; é o único ciclista na história que ganhou duas Tours com dez anos de diferença. E, nesta segunda Tour, também a história e a política fazem pedalar o grande Bartali.
Itália, 1946, realizam-se eleições. A Democracia Cristã ganhou com 35% dos votos, o Partido Socialista obteve 20% e o Comunista 19%. De Gasperi forma um governo no qual há alguns ministros socialistas e comunistas - Palmiro Togliati é Ministro da Justiça.
Em 1948, a Checoslováquia passa a ser controlada pelo Partido Comunista; a guerra fria está no seu apogeu. E De Gasperi, preante as pressões do presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, exclui socialistas e comunistas do governo, procedendo à confiscação de armas que estavam em poder de antigos guerrilheiros e convoca novas eleições. O PSI e o PCI juntam as suas forças. Recordemos que somando as suas percentagens tinham obtido mais votos do que a DC nas anteriores eleições, e se apresentam unidos sob as siglas da Frente Democrática Popular.
A campanha desencadeada pelos Estados Unidos e a CIA para evitar o triunfo da esquerda é arrasadora. São enviados mais de 10 milhões de cartas de apoio à DC, na sua maioria de ítalo-americanos; algumas dessas assinaturas são falsificadas. O clima é de uma enorme tensão. O resultado das eleições é o triunfo da DC de De Gasperi com uns folgados 48% de votos frente a uns 31% da FDP. O fantasma de um governo de esquerda, com a participação do PCI, fica definitivamente excluído da política italiana.
Neste ambiente, não distante de uma possível confrontação armada, corre-se na Tour. E Gino Bartali recebe uma chamada: é Alcide De Gasperi que lhe pede - agora é uma súplica, não é uma ordem ou comando do Duce; entre eles existe uma certa amizade - que ganhe uma etapa na Tour, que Itália necessita disso, que a capa dos jornais tem que ter esse triunfo e não as noticias políticas.
O ciclista disse que sim, que o fará. E não só ganha no dia seguinte a etapa, como também a Tour. A segunda que conquista e um novo tributo que paga com o seu esforço à política do seu país: primeiro ao fascismo e agora à “normalização democrática”; se bem neste caso sem reticências dada a sua proximidade com o partido de De Gasperi. E assim o perfil conservador deste grande ciclista perfila-se ainda mais: próximo do fascismo, fiel à Democracia Cristã e sempre perto das sotainas da Igreja.
Assim estava escrita a história, mas entre as dobradiças do evidente, ao arrepio do relato estabelecido, quase sempre se esconde outra verdade. Que esta apareça ou não depende de muitos fatores, um deles, e não o mais desdenhável, o azar. No ano 2000, Piero Nissin (1), arrumando a casa familiar, encontra uma caixa com documentos do seu pai Giorgio, falecido três anos antes. Examina detalhadamente os papeis e perante os seus olhos vai aparecendo uma rede da Resistência criada, entre outros, pelo seu pai.
O objetivo: expedir passaportes falsos e ajudar judeus a fugir da Itália fascista. A rede tem toda uma série de tipografias clandestinas em igrejas e conventos da Toscana, mas é preciso levar as fotos e os impressos necessários. Disso se encarrega, e a surpresa de Piero deve ter sido gigantesca quando descobre, Gino Bartali. É ele que no interior de um dos tubos do quadro da sua bicicleta faz de mensageiro. Todos os dados estão na caixa que Piero encontra e o surpreendente número de 800 passaportes falsos, 800 pessoas escapadas, 800 vidas salvas graças ao ciclista Gino Bartali.
E o mais surpreendente é que nem Giorgo Nissin, italiano e judeu sobrevivente do fascismo, disse nada desta rede de resistência, nem tão pouco Bartali falou dela e manteve, ao longo da sua vida, a fama de ter simpatizado com o fascismo. Gino Bartali morreu, em 2000, no mesmo ano em que este outro lado da história começa a desvelar-se, antes de se conhecer o seu trabalho na Resistência. E pensar que pouco lhe importava, pelo menos sobre estas questões realmente importantes, a opinião dos demais. Tinha afirmado: “As coisas que se fazem por desporto são como medalhas que se colocam na camisa. As coisas que se fazem porque nelas acreditas, guarda-as dentro toda a tua vida”.
A bicicleta de Bartali percorreu estradas e caminhos nos anos mais obscuros. Aquela que é evocada num dos poemas mais belos, escritos por Guadalupe Grande: “Tudo gira e dança entre os raios da bicicleta: é verão, é 1946” É quem torna possível a futura felicidade, é quem leva “A tinta invisível da salvação”, que convoca a assembleia dos 800: “Não é o ciclista que viaja sobre as rodas do animal, é a assembleia dos 800, a sinagoga (…) dizendo não aos belfos da dignidade e aos cordões de Primo Levi.”
E esta bicicleta traz à memória as centenas ou milhares de bicicletas que escondem panfletos, armas, papeis, na Itália daqueles anos, as que vimos, com as quais pedalamos com medo e angústia, em Roma Cidade Aberta de Rossellini ou aquelas que percorrem a Ferrara fascista, negra, provinciana, antissemita e cobarde das novelas de Giorgio Bassani. Vemos este homem silencioso, um pouco rude, que leva dentro, muito dentro, uma das coisas importantes que fez e no quadro da sua bicicleta o compromisso com a dignidade, pedalando na noite aterradora do fascismo; fazendo algo em que acredita e que, por isso, permanecerá no seu interior. Nem pode, nem quer reclamar medalha alguma porque não é uma coisa feita por desporto. É singelamente o que há que fazer. Neste caso, ainda que pedale solitariamente, Bartali sabe que é mais um do pelotão.
Não é demais recordar, neste ano em que se cumpre um século da corrida ciclista mais importante, e reparar nestas ironias e surpresas da história. Não acreditar demasiado nas verdades estabelecidas, nos relatos unívocos e sem sombras. Desconfiar das medalhas e olhar mais de perto o pelotão. São as bicicletas que avançam ao arrepio da história e do progresso, que não competem, que resistem e se ajudam, que arriscam. Entre elas ocupa um lugar especial aquela que guardava fotos e passaportes falsos no quadro. A bicicleta de Gino Bartali.
* Antonio Crespo Massieu - (Madrid, 1951) é Licenciado em Filosofia e Letras (Filologia Hispânica) pela Universidade Complutense e Diplomado em Estudos Portugueses pela Universidade de Lisboa; é professor de literatura espanhola no Ensino Secundário e tem publicado vários poemários, trabalhos de investigação e de criação literária em diversas revistas.
Tradução: António José André
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